DOSSIÊ SUPER 37
O complexo de Édipo, quando
se estende mais do que devia,
permanecendo na vida adulta,
tem uma representação
perfeita na obra de William
Shakespeare (1564-1616) – uma
associação que o próprio Freud
faz em A Interpretação dos
Sonhos. “Em Édipo, como no
sonho, a fantasia de desejo sub-
jacente da criança é trazida à
luz e realizada; em Hamlet, ela
permanece reprimida.” Hamlet,
o doce príncipe da Dinamarca,
protagonista da tragédia homô-
nima escrita na virada do século
16 para o 17, seria um neurótico
edipiano por excelência.
Esse personagem passa a peça
inteira hesitando diante da mis-
são que dá a si mesmo: matar o
tio, Cláudio, um calhorda que
assassinou o pai de Hamlet e
ainda se casou com a mãe dele,
Gertrudes. O psicanalista galês
Ernest Jones (1879-1958) sinali-
zou que a história gira em torno
da revolta do príncipe com o
fato de sua mãe se casar de
novo, e tão rápido, com outro
homem. Inconscientemente, o
rapaz acredita que, com a mor-
te do pai, a mãe seria só dele,
recuperando a exclusividade da
relação na primeira infância.
E há outra simbologia edi-
piana envolvida na fúria do
maior dos personagens de
Shakespeare. Ao se tornar
padrasto, Cláudio assume,
ainda que involuntariamente,
uma figura paterna. Hamlet,
então, quer livrar-se desse
“outro pai” que se intromete
em seu amor por Gertrudes.
Mas ter impulsos destrutivos
contra um pai simbólico já é
razão para ansiedade, sendo
só um desejo inconsciente.
Assumindo o assassinato
como missão a ser executada
na prática, Hamlet se en-
rosca num conflito psíquico
gigante. Daí procrastinar a
vingança até onde é possível:
as últimas cenas da tragédia.
Hamlet: arquéti-
po do reprimido
Deixem meu
pinto em paz!
Para Sigmund Freud, o desaparecimen-
to da fase edipiana a partir dos 6 anos
tem a ver com outro complexo de nome
espirituoso: o de castração.
Nessa época, segundo uma visão bem
polêmica do pai da psicanálise, a criança
só consegue conceber que seres humanos
tenham o membro masculino. A menina
não tem pênis? Azar o dela. É porque
alguém cortou. E isso dá um medo enor-
me. O complexo de castração é justa-
mente esse sentimento inconsciente da
ameaça de ficar sem pinto – “se cortaram
o das meninas, podem cortar o meu tam-
bém!”. Dessa forma, o mundo se dividi-
ria entre pessoas que têm pênis – os
afortunados que fazem xixi de pé – e
aquelas que foram castradas – sim, as
que usam o banheiro feminino. Para
exemplificar, Freud cita o famoso trata-
mento do Pequeno Hans, um menininho
que, ao constatar a falta de pênis na irmã
caçula, em vez de entender que seria assim
mesmo, acha que é tudo questão de tempo,
que o órgão só não cresceu ainda.
Nessa fase, o menino também acaba
admitindo que, convenhamos, o pai é um
baita de um empecilho para o seu dese-
jo de se casar com a mãe. Isso o ajuda a
desistir do plano inconsciente de inces-
to e parricídio qualificado, e essa paz de
espírito – ou da mente – o leva a um
outro ganho na formação da sua perso-
nalidade: ele passa a se identificar com
o pai. Uma identificação que é funda-
mental para que o garoto possa, em bre-
ve, arrumar outro objeto sexual para
substituir a mamãe. Se seguir essa linha
sem traumas, podem ser as adolescentes
da escola. Se não seguir o que Freud
considera como o desenvolvimento psi-
cossexual normal, em vez de mimetizar
o pai, ele vai se fixar na figura da mãe, e
seu desejo pode se voltar para os garotos
na educação física. Ou ainda outras con-
figurações de desvio podem levá-lo à
perversão – quando o objeto de desejo
sexual pode virar uma cabra do sítio, um
sapato de salto alto ou um escapamento
de carro. Nessa coisa de o que é normal
ou não, aliás, Freud afirma que a homos-
sexualidade também é uma perversão.
Mas, calma lá. O pai da psicanálise ex-
plica (no próximo capítulo) que há vários
tipos de comportamentos perversos, e
que o dos homossexuais não tem nada
de antinatural. Pelo contrário: é só o
desvio de uma meta reprodutiva.
Édipo complexado
Por uma dessas reviravoltas da história, a
teoria edipiana de Sigmund Freud, num
sentido inverso, acabou influenciando
também o estudo da mitologia grega. Édi-
po é um personagem mais sofisticado aos
olhos de hoje por causa de Freud. Tanto
que muita gente tem noções básicas sobre
a teoria, mas nunca leu a obra de Sófocles
nem viu uma peça de teatro inspirada
nela. O rei de Tebas é muito mais conhe-
cido por conta da enorme repercussão do
pensamento freudiano sobre a cultura.
Essa influência do influenciado ganhou
tal dimensão que alguns estudiosos dos
mitos gregos precisaram se posicionar
para que Édipo não se tornasse “alguém
com complexo de Édipo”.
Em Compêndio da Psicanálise, seu
último livro, que deixou incompleto,
Freud faz uma avaliação do legado de
sua teoria edipiana: “Se a psicanálise
não tivesse em seu ativo senão a simples
descoberta do complexo de Édipo re-
primido, isso bastaria para situá-la en-
tre as preciosas novas aquisições do
gênero humano”.
Ok, humildade não era o forte dele. Mas
a importância desse conceito, para a psi-
cologia, de que menino gosta da mamãe
e menina quer casar com o papai, é mais
que evidente. Até hoje é uma elaboração
que faz parte das interpretações na prá-
tica psicanalítica. E ficou uma ideia tão
grande porque, quando Freud encaixou
esse herói trágico da mitologia em sua
teoria do inconsciente, ele fez mais que
sugerir que impulsos incestuosos esta-
riam emaranhados na mente infantil. Sua
concepção foi ganhando corpo ao longo
dos anos, ressurgindo a cada novo pos-
tulado, e atravessaria o conjunto da obra
freudiana, firmando-se, principalmente,
no centro de tudo o que ele escreveu
sobre como a sexualidade vai crescendo
no nosso inconsciente, influenciando
relações pessoais, neuroses e até nossas
identificações de gênero – um tema de
debates apaixonados aqui no século 21.
Para Sigmund Freud, Édipo é peça-
chave do nosso amadurecimento – de-
fine os caminhos da nossa vida sexual,
é pai biológico dos nossos sentimentos
de culpa e ainda divide o mundo entre
sujeitos normais e pervertidos.
imagem: Getty Images
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