Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

54 FREUD


E atenção: essa segunda teoria
não invalida nem substitui a pri-
meira – nem podia, já que a es-
sência da psicanálise está no con-
flito entre consciência e universo
inconsciente. Na verdade, a nova
tópica dialoga com a primeira,
tornando a nossa psique um lugar
muito mais sofisticado – e com-
plicado. Por exemplo, o id estaria
completamente mergulhado no
inconsciente – ainda bem, ou su-
as loucuras estariam à solta –,
enquanto o ego e o superego têm
partes significativas expostas na
consciência.
O importante é que o cabo de
guerra entre essas instâncias resul-
ta na complexidade dos compor-
tamentos humanos – define o tipo
de pessoa que você é.
Porém, antes de chegarmos às
particularidades de cada uma delas,
é importante conhecer dois princí-
pios que regem o funcionamento
mental, segundo a psicanálise: o
princípio do prazer e o princípio da
realidade. Freud falou deles pela
primeira vez em 1911, no ensaio
Formulações sobre os Dois Princípios
do Funcionamento Mental, bem an-
tes de lançar ao mundo sua segun-
da divisão da mente.
O primeiro tem por objetivo
proporcionar prazer e evitar des-
gostos, custe o que custar. Ele
pede que a mente se esforce para
atender aos nossos impulsos mais
básicos e primitivos: sexo, raiva,
fome etc. Enquanto esse impulso
não é atendido, a mente fica num
estado de ansiedade, que só desa-
parece quando o estímulo é satis-
feito. Sabe aquela pessoa que fica
num tremendo mau humor quan-
do está com fome? É por aí.
Já o princípio da realidade confron-
ta o do prazer, impondo as restrições
necessárias para que nossas vonta-
des se adaptem ao mundo real. Afi-
nal, não é viável – nem possível –
fazer sexo a toda hora, em qualquer
lugar, por mais que você esteja a fim.
Esse princípio nos lembra que é
preciso cair na real: não dá para ser
feliz o tempo todo.
Mas estávamos falando das ins-
tâncias da segunda tópica. É o que
vamos ver a seguir.

Movido pelo princípio do
prazer, o id é a parte da mente
que quer gratificação imediata de
todos os seus desejos e necessi-
dades. Imagine-se vivendo uma
eterna primeira infância, quando
você chorava se tinha fome, ar-
rancava um boneco das mãos do
amigo porque queria o brinquedo,
dava um pontapé no gatinho da
sua avó só porque achou o miado
dele engraçado. Bebês estão
sempre com o id no controle, já
que é a única instância psíquica
que, segundo Freud, está presente
desde o nascimento. Mas há mui-
tos exemplos de id desgovernado
também na vida adulta, como o
tarado que coloca o pênis para
fora no ônibus, mesmo saben-
do que haverá consequências,
ou a pessoa que, diante de uma
promoção no site de vinhos, gasta
muito mais do que sua condição
financeira recomenda – aliás, o
cartão de crédito é uma incrível
ferramenta para colocar o id atro-
pelando o que vier na frente.
E preste atenção à ideia de a
gratificação ter de ser imediata


  • como o neném faminto que
    chora horrores exigindo o peito
    materno, não querendo saber se a
    mãe está numa videoconferência
    ou dirigindo na estrada. No caso
    do tarado, ele não espera estar
    trancado num banheiro para se
    masturbar – faz em público
    mesmo, na hora que dá vontade. E
    o consumidor impulsivo não
    consegue esperar o salário entrar


no começo do mês seguinte –
acha que precisa comprar agora.
Freud apresentou o id como a
única parte da nossa personalidade
que é totalmente inconsciente, onde
se escondem nossos pensamentos
mais ogros. Assim como um vilão
de história em quadrinhos, o id não
conhece freios morais nem dá bola
para a ética da sociedade. Só quer
buscar satisfação – o que, claro, não
é uma possibilidade realista se você
não for um vilão de HQ. Se
fôssemos guiados só pelo princípio
do prazer, sairíamos pela rua
estuprando – para satisfazer um
desejo sexual momentâneo –,
roubando – a versão adulta do bebê
que pega o brinquedo do colega
sem autorização –, agredindo, rindo
em horas impróprias, comendo e
bebendo até vomitar, ingerindo
drogas até a overdose. Seríamos
violentos e tarados.
Deu para pescar que o id é um
lado psicopata da nossa personali-
dade. Mas há um bom motivo
para ele existir. Imagine alguém
sem impulsos de atender às
próprias necessidades e desejos.
Esse alguém morreria de fome. E
a espécie humana não iria para a
frente se os primeiros hominíde-
os não respondessem aos seus
desejos sexuais, já que não
existiria reprodução.
O que o id faz é tentar diminuir
aquela ansiedade criada pelo
princípio do prazer. Por exemplo,
se você sente fome, começa a ficar
tenso, pensando “preciso comer”.
O id então chega e diz “cara, se
está com fome, come logo e para
de sofrer por causa disso”. Bom,
né? O problema é que ele não
conhece medida, e também pode
soprar no seu ouvido algo assim:
“Cara, a fome é grande. Pede logo
esse sanduba de picanha com
provolone, maionese, catupiry e
cebola empanada. Melhor: pede
dois”. Ah, mas você está de
dieta, precisa perder 10 quilos.
O id não está nem aí para esse
detalhe. Só quer recompensa
imediata. Quem tenta ajustar
esse desejo às circunstâncias da
vida real é a próxima instância
teorizada por Freud.

id


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