Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

de totalidade – “o século” – , mas constituía simplesmente um fluxo de
anos mais ou menos relevantes de acordo com as mudanças na nossa
própria vida. No século que se aproximava, as pessoas que tínhamos
conhecido na infância e das quais não tivemos mais notícias, os nossos
pais e os avós, todos estariam definitivamente mortos.


Os anos 90 recém-vividos não tinham um significado específico, eram
anos de desilusão. Vendo o que acontecia no Iraque – onde os Estados
Unidos matavam a população de fome e a ameaçavam frequentemente
com ataques, onde crianças morriam por falta de medicamentos –, em
Gaza ou na Cisjordânia, na Tchetchênia, no Kosovo, na Argélia etc., era
melhor não se lembrar do aperto de mão entre Arafat e Clinton em Camp
David, nem da “nova ordem mundial” anunciada, ou de Yeltsin em seu


tanque.[1] Na verdade, bem pouca coisa valia a pena ser lembrada, talvez
as noites nebulosas de dezembro de 1995, já tão distantes, sem dúvida,


quando houve a última grande greve do século.[2] E, em segundo plano, a
bela e infeliz princesa Diana, morta em um carro na ponte de l’Alma, ou
o vestido azul de Monica Lewinsky, manchado com o esperma de Bill
Clinton. Pairando por cima de tudo, a Copa do Mundo de futebol. As
pessoas adorariam poder reviver, todas juntas em frente à tevê, as ruas
desertas atravessadas somente por entregadores de pizza, as semanas de
espera que nos conduziam, de jogo em jogo, até aquele domingo e aquele
instante em que, em meio ao clamor e ao êxtase, poderíamos ter morrido
juntos de tanta alegria por ter a França vencido – só que era o contrário
exato da morte – e nos entregar a um único desejo, uma única imagem,
uma única narrativa. Foram dias fascinantes, cujos vestígios irrisórios
eram as propagandas da água Evian e da rede Leader Price com o rosto
de Zidane, espalhadas pelas paredes do metrô.


Depois disso, não precisava haver mais nada.


O último verão – tudo era o último – tinha chegado. As pessoas se
reuniam mais uma vez. Amontoavam-se nos jardins de Paris e iam de
carro para o norte, na direção das falésias do Canal da Mancha, a fim de
ver a Lua cobrir o Sol ao meio-dia. De repente, esfriou e começou a
anoitecer. Tínhamos pressa de ver o Sol reaparecer e, ao mesmo tempo,

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