Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

A


relação a um acontecimento que – agora era preciso admitir – nós não
tínhamos realmente vivido.


Sem ter tempo de refletir, entrávamos em um estado de medo. Uma força
obscura tinha se infiltrado no mundo, disposta aos atos mais atrozes em
todos os pontos do planeta. Envelopes cheios de um pó branco matavam
seus destinatários, o Le Monde dava a manchete “A guerra que se
aproxima”. O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, filho
insignificante de um mandatário anterior, eleito de modo ridículo depois
de intermináveis recontagens de votos, proclamava a guerra das
civilizações, do Bem contra o Mal. O terrorismo tinha um nome (Al
Qaeda), uma religião (o islamismo) e um país (o Afeganistão). Não
podíamos mais dormir, era preciso ficar alerta até o fim dos tempos. A
obrigação de endossar o medo dos americanos esfriava a solidariedade e
a compaixão. Fazíamos troça da incapacidade deles para capturar Bin
Laden e o mulá Omar, que tinha fugido de moto.


A imagem do mundo muçulmano virava do avesso. Aquela nebulosa
constituída por homens de vestido e mulheres usando véu como santas
virgens, homens conduzindo camelos pelo deserto, danças do ventre,
minaretes e muezins passava do estado de objeto distante, pitoresco e
atrasado, para a condição de força moderna. As pessoas se esforçavam
para unir modernidade e peregrinação à Meca, moças usando burcas e
preparando uma tese na universidade de Teerã. Não dava mais para
esquecer os muçulmanos. Um bilhão e 200 milhões de pessoas.


(O bilhão e 300 milhões de chineses sem crença alguma além da
economia que turbinava a fabricação de produtos baratos destinados ao
Ocidente eram apenas um silêncio distante.)


religião estava de volta, mas não era a nossa, na qual já não
acreditávamos, que não quisemos transmitir e, no fundo,
permanecia sendo a única legítima, a melhor, se fosse preciso julgar.
Dela, guardávamos, no museu da infância, as dezenas do rosário, as

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