Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

cantigas e o peixe das Sextas-Feiras Santas, “sou cristão, eis minha
glória”.


A distinção entre os “franceses de raiz” – isto é, que fazem parte da
árvore, da terra – e os “provindos da imigração” não se alterava em nada.
Quando o presidente da República evocava, em um discurso, o “povo
francês” era claro que se referia a uma entidade – generosa e acima de
qualquer suspeita xenofóbica –, que continha Victor Hugo, a Tomada da
Bastilha, os camponeses, os professores e os padres, o Abbé Pierre e


Charles de Gaulle, Bernard Pivot, Asterix, Mère Denis e Coluche,[5] as
Maries e os Patricks. Mas essa entidade não incluía Fatima, Ali e
Boubacar, aqueles que realizavam suas compras nas imensas seções de
alimentos halal e faziam o Ramadã. E menos ainda os jovens dos “bairros
desfavorecidos”, cujos capuzes cobrindo a cabeça e o jeito desleixado de
andar seriam sinais evidentes de sua dissimulação e preguiça, de que
certamente não representavam nada de bom. De modo obscuro, eles
eram os nativos de uma colônia no interior do país sobre a qual não
tínhamos mais o controle.


A linguagem construía constantemente a divisão entre “nós” e “eles”,
circunscrevia-os em “comunidades” nos “bairros”, em “territórios sem
lei”, entregues ao tráfico de drogas e aos estupros coletivos. A linguagem
os tornava selvagens. Jornalistas declaravam: “Os franceses estão
preocupados.” Segundo pesquisas – que ditavam as emoções –, a
insegurança era a principal fonte de preocupação das pessoas. Ela teria a
forma inconfessada de uma população morena e de bandos velozes que
roubavam o celular de pessoas honestas.


A mudança para o euro foi uma distração, por um breve momento. A
curiosidade de ver de onde vinham as cédulas e moedas não durou mais
do que uma semana. Era uma moeda fria, com pequenas notas limpas,
sem imagens nem metáforas, um euro era um euro, nada além disso –
uma moeda quase irreal, sem peso e dissimulada, que retraía os preços e
dava a impressão de que as coisas estavam baratas, embora, ao olhar o
contracheque, parecesse que tínhamos empobrecido. Era tão estranho
imaginar a Espanha sem as pesetas ao lado das tapas e sangrias, a Itália

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