Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

que há vinte anos dizia barbaridades antissemitas e racistas, o demagogo
de expressão colérica que divertia sua plateia, surgia tranquilamente e


aniquilava Jospin.[10] “Chega de esquerda”, era o recado. A leveza
política da vida se esvaía pelas mãos. A culpa era nossa. O que será que
tínhamos feito? Não teria sido melhor votar em Jospin em vez de
Laguiller? A consciência andava em círculos, presa no espaço entre o
gesto inocente de pôr o voto na urna e o resultado coletivo. Seguimos
nosso desejo até o fim e fomos punidos. Éramos culpabilizados, o
discurso da vergonha substituiu o da insegurança que estava ali até o dia
anterior. A caça aos responsáveis começou: os que se abstiveram, os que
tinham votado pelos partidos ecologista, trotskista e comunista, e a
televisão mostrando em loop, na véspera da eleição, o patético Papy
Voise agredido por criminosos que, para piorar, ainda atearam fogo no


barraco onde o miserável morava.[11] A imprensa “dava voz” aos que
tinham votado silenciosamente em Le Pen: operários e caixas de
supermercado saídos das sombras eram interrogados em busca de uma
explicação rápida e inútil.


Mas ninguém teve muito tempo para refletir, pois começou o frenesi para
uma mobilização geral, com o objetivo de salvar a democracia, que
intimava a votar em Chirac (com conselhos para conservar a pureza da
alma ao depositar o voto na urna: tapar o nariz e colocar luvas, “mais vale
um voto que fede do que um voto que mata”). O impulso foi unânime e
estrondoso e levou todo mundo às ruas, formando uma multidão que
marchou dizendo palavras de ordem típicas do 1º de Maio: “É hora de
deter Führer Le Pen!”, “Sem medo, resistir”, “Eu tenho colhão”, “I’ve got
the balls”, “Tengo las bolas”, “17,3% na escala Hitler”. Os jovens, de volta
do recesso de primavera, se sentiam como se estivessem na Copa do
Mundo. Debaixo de um céu cinzento na Place de la République lotada de
gente, esmagados detrás de um cortejo monstruoso que não avançaria
nunca, fomos invadidos pela dúvida. Parecíamos figurantes em um filme
sobre os anos 30. Havia no ar certa hipocrisia. Todos se resignavam a
votar em Chirac em vez de ficar em casa. Depois de votar, a sensação era
de ter cometido um ato estúpido. À noite, na tevê, vendo o mar de rostos
erguidos para Jacques Chirac, gritando “Chichi, te amamos”, enquanto
alguém balançava por cima das cabeças a mãozinha que era o símbolo da
associação SOS racismo, só conseguíamos pensar, que idiotas.

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