Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

Um ano inteiro não seria suficiente para experimentar todos os tipos de
iogurtes e sobremesas lácteas oferecidos no mercado, mesmo comendo
um por dia. Havia depiladores diferentes para axilas masculinas e
femininas, protetores de calcinhas, lenços umedecidos, “receitas criativas”
e “biscoitos tostados” para gatos, separados em seções para gatos adultos,
jovens, idosos, de apartamento. Nenhuma parte do corpo humano e suas
funções ficavam de fora da previsão dos industriais. Os alimentos tinham
“teor reduzido” ou eram “enriquecidos” por substâncias invisíveis,
vitaminas, ômega 3, fibras. Tudo o que existe, o ar, quente e frio, a grama
e as formigas, o suor e o ronco noturno, poderiam infinitamente gerar
mercadorias e produtos em uma subdivisão contínua da realidade e em
um desdobramento dos objetos. A imaginação comercial não tinha
limites, se apropriava de todas as linguagens, ecológica, psicológica, e
atribuía a si um caráter humanitário e de justiça social, convocando o
consumidor a se juntar a ela na “luta contra uma vida cara” e
prescrevendo “O prazer que você merece”, “Faça seu negócio”.
Organizava a comemoração das festas tradicionais, do Natal e do Dia dos
Namorados, e acompanhava o Ramadã. Era uma moral, uma filosofia, a
forma incontestada das nossas existências, A vida. A verdadeira.
Supermercados Auchan.


Vivia-se uma ditadura doce e feliz, ninguém se opunha a ela, era preciso
apenas se proteger dos excessos e educar o consumidor, primeira acepção
usada para definir o indivíduo. Para todos, inclusive para os imigrantes
clandestinos amontoados em barcos que chegavam à costa da Espanha, a
liberdade era um shopping center, com seus hipermercados entupidos de
produtos. As pessoas achavam normal ter mercadorias chegando do
mundo inteiro e circulando livremente, enquanto os homens eram
barrados nas fronteiras. Para atravessá-las, alguns se escondiam dentro
de caminhões, disfarçando-se de mercadorias – inertes –, e assim
morriam asfixiados, esquecidos pelos motoristas em um estacionamento
debaixo do sol de junho em Douvres.


A demanda pela distribuição de produtos ia tão longe que colocavam à
disposição dos mais pobres seções com produtos a granel de baixa
qualidade e sem marca, carne enlatada, patê de fígado – que faziam os

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