Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

E


natural e irrefletido. As pessoas que não sabiam manipular um
computador e um MP3 player iam desaparecer como tinham
desaparecido aquelas que não sabiam usar o telefone ou uma máquina de
lavar.


Nas casas de repouso, as senhoras idosas ficavam vendo, com olhos
cansados, o espetáculo contínuo de publicidades de produtos e aparelhos
que elas nunca poderiam imaginar que seriam necessários e que não
teriam mais nenhuma chance de ter.


stávamos completamente tomados pelo tempo das coisas. Um
equilíbrio mantido por bastante tempo entre a espera por elas e o
seu surgimento, entre a privação e a obtenção, tinha se rompido. A
novidade já não suscitava ataques nem entusiasmo, já não assombrava
mais o imaginário. Era o caminho normal da vida. Talvez o próprio
conceito de novo desaparecesse, assim como o de progresso já quase não
existia, estávamos condenados a isso. Começávamos a entrever a
possibilidade ilimitada de tudo. Os corações, os fígados, os olhos, a pele
passavam dos mortos para os vivos, os óvulos de um útero para o outro e
mulheres de 60 anos davam à luz. O lifting interrompia a passagem do
tempo no rosto das pessoas. Na televisão, Mylène Demongeot era a
mesma boneca resplandecente que tínhamos visto em Basta Ser Bonita,


conservada intacta desde 1958.[13]


Dava vertigem pensar nos clones, em crianças inseridas em um útero
artificial, implantes cerebrais, em wearables – que em inglês ganhava
uma pitada a mais de estranheza e de poderio. Dotados de uma
sexualidade completamente indiferenciada, essas coisas e
comportamentos coexistiriam com os antigos durante certo tempo.


Mas a facilidade de tudo ainda assombrava e produzia a exclamação,
diante de um novo objeto recém-chegado no mercado: “Sensacional!”


Havia o pressentimento de que, no tempo de uma vida, surgiriam coisas
inimagináveis às quais as pessoas se habituariam, como fizeram tão
rapidamente com o celular, o computador, o iPod e o GPS. O que mais
perturbava era não poder imaginar como seria o modo de vida em dez
anos nem saber se nós mesmos nos adaptaríamos às tecnologias ainda

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