Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

O mais importante era o que podíamos fazer com eles, a lei da troca, o
prazer. O grande desejo de poder e impunidade se realizava. Seguíamos
na realidade de um mundo de objetos sem sujeitos. A internet realizava a
transformação fascinante do mundo em discurso.


O clique saltitante e veloz do mouse na tela era a medida do tempo.


Em menos de dois minutos era possível encontrar: as colegas do Liceu
Camille Jullian, em Bordeaux, turma do 1º ano secundário C2, 1980-81,
uma canção de Marie-Josée Neuville, um artigo de 1988 do jornal
L’Humanité. A busca do tempo perdido passava pela web. Os arquivos e
todas as coisas antigas que sequer imaginávamos poder encontrar um dia
chegavam até nós sem demora. A memória tinha se tornado inesgotável,
mas a profundidade do tempo – cuja sensação era produzida pelo cheiro
e o amarelecido do papel, o barulho das páginas, o sublinhado de um
parágrafo pela mão de um desconhecido – tinha desaparecido.
Estávamos em um presente infinito.


Queríamos, incessantemente, “salvar” esse presente, em um frenesi de
fotos e filmes imediatamente visíveis. Centenas de fotos enviadas para
todos os amigos, em um novo uso social, depois transferidas e
arquivadas em pastas – que raramente eram abertas – no computador. O
que contava era o gesto de fotografar, a existência captada e duplicada,
registrada à medida que vivíamos, cerejeiras em flor, um quarto de hotel
em Estrasburgo, um bebê recém-nascido. Lugares, encontros, cenas,
objetos, era a conservação total da vida. Com a vida digital, dava para
esgotar a realidade.


Nas fotos e filmes classificados por data que íamos passando na tela,
além da diversidade de cenas, paisagens e pessoas, espalhava-se a
luminosidade de um tempo único. Outra forma de passado se inscrevia,
fluido, com baixo teor de lembranças reais. Havia imagens demais para
nos determos em cada uma e revivermos as circunstâncias de quando
tinham sido feitas. Por meio delas vivíamos uma existência leve e

Free download pdf