Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

transfigurada. A multiplicação de nossos rastros abolia a sensação do
tempo que passa.


Era estranho pensar que, com os DVDs e outros suportes, as gerações
seguintes conheceriam tudo sobre nossa vida cotidiana mais íntima,
nossos gestos, o modo de comer, falar e fazer amor, os móveis e roupas
de baixo. A escuridão dos séculos anteriores – pouco a pouco eliminada,
primeiro pela câmera no estúdio do fotógrafo, depois pelas câmeras
digitais dentro do nosso próprio quarto – desapareceria para sempre.
Ressuscitávamos antes da hora.


E cada um tinha em si uma grande memória vaga do mundo. Das coisas,
só conservávamos palavras, detalhes, nomes, aquilo que viria depois da
locução de Georges Perec, “eu me lembro”: do sequestro do barão
Empain, dos chocolates Picorette, das meias de Bérégovoy, de Devaquet,


da Guerra das Malvinas, do achocolatado Benco.[14] Mas não eram
lembranças de verdade, continuávamos chamando assim, mas eram
outra coisa: marcadores de uma época.


Os meios de comunicação assumiram a responsabilidade pelo processo
de memória e esquecimento. Eles comemoravam tudo o que era possível,
o apelo do Abbé Pierre, a morte de Mitterrand e de Marguerite Duras, o
início e o fim das guerras, a chegada à Lua, Chernobyl, o 11 de Setembro.
Cada dia era o aniversário de alguma coisa, de uma lei, da abertura de
um processo, de um crime. Eles dividiam o tempo em anos do iê-iê-iê,
dos hippies, da Aids, e as pessoas em gerações De Gaulle, Mitterrand,
1968, baby boom, digital. Pertencíamos a todas elas e a nenhuma. Os
nossos próprios anos não estavam ali.


Estávamos nos transformando. Não reconhecíamos nossa forma nova.

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