Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

fundo do poço, ainda que seja difícil saber onde o poço acaba na
Venezuela.


O conjunto residencial El Rosal, onde mora minha cunhada, é um retrato
da decadência, com a pintura desbotada das fachadas e alguns carros sem
pneus espalhados pelo estacionamento. Já não vive tanta gente nos
prédios: muitos moradores deixaram o país em busca de outra vida. Há
pelos menos cinco anos não ponho os pés aqui, e me impressiona o lixo
acumulado perto da entrada, o abandono geral e o vazio do
estacionamento, o mesmo onde antes eu tinha que me esforçar para
encontrar uma vaga.


El Rosal é uma construção de linhas retas, composta por dois blocos de
apartamentos, no formato de dois Us deitados, colados um no outro em
sentidos opostos. Visto do alto parece uma aranha de quatro patas
esculpida na pedra. Na parte interna do U, estendem-se corredores que
levam aos apartamentos. Daqui debaixo, avisto moradores encostados
nas muradas dos corredores, parados ou conversando entre si, talvez
porque seja mais fresco ficar ali do que dentro das casas.


Como os elevadores estão estragados, subo os sete andares arrastando
uma mala de 14 quilos. O interfone fica na entrada do corredor, protegida
por uma grade. Mas o interfone também não está funcionando. Sou
obrigada a gritar o nome de minha cunhada: “Júliaaaaaaaa!” Ela aparece
logo. Enquanto se aproxima, percebo que ainda preserva, aos 52 anos, a
silhueta bem definida, curvilínea, nem magra nem gorda, mas seu rosto
começa a acusar as marcas da vida difícil que tem levado nos últimos
anos. Está vestida de camiseta e short – e parece menos arrumada do que
na minha lembrança. Quando se aproxima, apesar de seus cabelos
estarem presos, noto alguns fios brancos. Fica claro que ela parou de
pintá-los faz tempo. “Me desculpa receber você desse jeito”, diz, me
abraçando. “Tem muitos dias que não consigo nem lavar a cabeça.”


Meu sobrinho Juan Pablo, de 14 anos, único filho de Júlia, me
cumprimenta às pressas e pede licença para ir jogar bola na quadra do
prédio. “A quadra está cheia porque não tem luz”, ele grita, da porta.

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