Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

Júlia se separou de Pablo, meu irmão mais velho, há mais de uma década,
mas eu a continuo chamando de “cunhada”. Em 2003, quando estava
grávida, ela se mudou para El Rosal com meu irmão. Eles tinham
acabado de mobiliar esse apartamento que compraram no prédio de
classe média depois de muita economia. Iam começar uma nova fase da
vida. Meu irmão não ficou muito tempo com ela, mas, para minha mãe,
Júlia sempre foi a nora ideal.


Conversamos um pouco na sala, e abro minha mala para entregar alguns
produtos que trouxe de São Paulo: sabonetes, cremes, chocolates e
algumas roupas. Tento fazer com que pense que são presentes
supérfluos, para ela não achar que a irmã mais nova do seu ex-marido
está lhe fazendo favores. Mas eu sei bem que aquelas coisas são muito
úteis, pois há escassez de tudo na Venezuela. É muito mais coisa do que
Júlia imaginava receber. Antes de embarcar, perguntei por telefone o que
queria que eu levasse do Brasil. Talvez por vergonha, ela tinha me pedido
apenas um filtro solar e alguns produtos para tratar as espinhas do filho.


Os moradores que restam no prédio estão quase todos em casa. Pode-se
ouvir o movimento deles pelos corredores, onde aproveitam a brisa que
chega do lago de Maracaibo, visível a distância. A construção aberta
deixa o prédio bem fresco – é uma vantagem importante da construção
numa cidade tão quente. Alguns vizinhos conversam, outros apenas
olham para o vazio. No apartamento em frente, na outra ponta do U, a
família cozinha em uma pequena churrasqueira presa na parede do
corredor. “Como a luz não volta, devem estar preparando toda a carne ou
o frango que tinham guardado, para não estragar”, explica minha
cunhada.


Três semanas atrás, Júlia teve que dar as suas reservas de comida para
conhecidos, pois não teria como conservá-las. O país ficou às escuras por
cinco dias. Na versão oficial, o apagão iniciado em 7 de março ocorreu
devido a uma sabotagem ao sistema elétrico da Usina Hidrelétrica Simón
Bolívar, conhecida como Guri, a mais importante do país. Desta vez, o
blecaute já dura três dias. Toda vez que falta eletricidade, ninguém sabe
quando ela voltará, pois o governo nunca dá notícias sobre o
reestabelecimento do serviço (mesmo que desse, eu não ficaria sabendo,
pois minha linha de celular está sem conexão).

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