Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

começar a entrar nos prédios para roubar.” Estamos no corredor,
aproveitando a brisa do fim de tarde.


Quando a noite começa a cair, é possível entender que esse medo não é
infundado. Não se vê quase nada, exceto as luzes de celulares, aqui e ali.
De repente, os vizinhos da frente resolvem acender uma tocha ao lado da
churrasqueira. A labareda espalha uma luz forte pelo andar. Do corredor,
avistamos o horizonte da cidade, imersa na escuridão. Em alguns prédios
há pontos de luz. Júlia se antecipa à minha pergunta. “São prédios que
têm geradores”, diz.


Como meu celular continua sem conexão, deixo o aparelho na cozinha,
para servir de lanterna para minha cunhada, que prepara o jantar. Mais
tarde ficarei sabendo, pelo site da ONG NetBlocks – que monitora a
disponibilidade da internet nos países –, que naqueles dias 85% do país
ficou sem conexão. Empresto meu computador para que Júlia e seu filho
carreguem os seus celulares. Nem pergunto se eles têm velas, pois seria
absurdo gastar o dinheiro escasso com isso. Sinto vergonha por não ter
trazido de São Paulo uma lanterna – eu achei que eles deviam ter ao
menos uma.


Enquanto amassa as arepas, o tradicional pão de milho – que agora, com
a migração dos venezuelanos, começa a aparecer no Brasil –, Júlia me
coloca a par da vida dos seus irmãos e sobrinhos. Sua família, de origem
pobre, é de Dabajuro, uma pequena cidade do estado de Falcón a 140
quilômetros de Maracaibo. Suas quatro irmãs se dedicaram ao comércio
e, com esforço, entraram para a classe média. Nos últimos anos, porém,
com o agravamento da crise no país, três delas e quatro de seus sobrinhos
mais velhos emigraram para Colômbia, Equador e Panamá. Uma das
sobrinhas de Júlia veio morar com ela, depois que os pais, antes
prósperos lojistas, mudaram-se para Santiago de Cali, na Colômbia, onde
ganham menos de um salário mínimo.


Crisbel, a sobrinha, tem 18 anos e estuda ciências contábeis numa
universidade privada, pois a pública, a Universidade de Zulia, onde
minha mãe e eu nos formamos, deixou de ser uma opção por causa da
insegurança, falta de professores e deterioração das instalações. Mesmo
na faculdade particular de Crisbel as aulas são constantemente

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