Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

D


maior que em San Cristóbal, nos Andes venezuelanos, cidade natal da
minha mãe e onde vive o que resta de sua família. O sol em Maracaibo
arde sempre tão intenso que, quando eu era criança, achava bonitos os
dias cinzentos e nublados.


Tomamos o café da manhã com arepas, queijo e café preto. “Não tem
leite”, desculpa-se Júlia. Há uma razão para que todas as refeições
tenham queijo: é preciso gastá-lo antes que estrague. Meu sobrinho se
levanta, o rosto sempre sério. Mais um dia sem aula, sem ver a turma da
escola, sem energia, sem internet, sem água. Peço que me acompanhe até
a casa de minha mãe. Ele aceita.


A última vez que estive na casa foi em agosto do ano passado, quando
vim a Maracaibo para tirar minha mãe da cidade e levá-la para junto dos
irmãos, em San Cristóbal, a 450 quilômetros daqui. Doente e sozinha, a
situação dela tinha piorado muito nos últimos anos. Eu acreditava que o
clima ameno de San Cristóbal e a companhia das irmãs seriam benéficos
a ela, mas a saúde de Paulina só piorou – e nunca saberei se foi por causa
dos problemas que tinha desde a juventude ou se em consequência da
vida num país que tem submetido tanta gente a provas tão difíceis.
Aquela foi nossa última viagem juntas.


esde que saí da Venezuela, há nove anos, desenvolvi um pânico
recorrente: estava sempre à espera de uma ligação com a notícia da
piora do estado de saúde de minha mãe – e, então, talvez não
houvesse tempo para encontrá-la com vida. Foi o que aconteceu, mas de
uma maneira ainda mais inesperada.


Em 4 de dezembro liguei de manhã para minha mãe, como fazia
diariamente, e percebi que ela não estava pronunciando as palavras com
clareza. Pedi, então, que minha tia Rosa a levasse ao médico, com
urgência. Como minhas contas bancárias na Venezuela tinham sido
bloqueadas depois de um decreto do governo que limitou as transações
no país para quem mora no exterior, tive que transferir dinheiro para a
família em San Cristóbal. Imediatamente, fiz a primeira remessa – e
várias outras se seguiram durante o dia, porque, com a inflação em
disparada e a mudança contínua dos preços cobrados pelos serviços, a
quantia nunca era suficiente.

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