Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

A funerária estava instalada numa sala muito simples, pintada de azul,
no meio da qual tinham colocado o caixão, pequeno para um adulto.
Havia quatro vasos com flores não muito bonitas nos cantos e algumas
velas. Por causa da escassez de tudo no país, o caixão era alugado. A
funerária alternava os únicos dois que tinha. Quando morreu, Paulina
estava com sua malha favorita, mas a malha fora furtada, e no caixão
portava apenas um vestido simples, escolhido por uma prima. Eu não
conseguia parar de pensar em como minha mãe ficaria irritada com tudo
aquilo. “Que funeral medíocre, que café sem gosto, quantos erros
ortográficos no obituário. Que diferença do funeral de seu pai”, eu podia
ouvi-la reclamar. Vinte e cinco anos atrás, meu pai, de fato, teve um
funeral bem diferente, daqueles com enormes coroas de flores, saídas de
não se sabe onde, que abarrotaram a sala do velório. Ironicamente, o
preço dos dois velórios foi o mesmo: 40 mil bolívares soberanos. O de
meu pai tivemos que financiar em quatro parcelas. O de minha mãe
paguei à vista. Custou 74 dólares, o equivalente em dezembro a 39 960
bolívares (em dezembro, 1 dólar equivalia a 540 bolívares no mercado
paralelo; no final do mês passado, 1 dólar estava valendo 5,2 mil
bolívares). “Para você ver que economia estável: cobraram o mesmo
preço 25 anos depois”, brincou meu primo.


Mostraram-me três caixas para escolher em qual delas eu preferiria
guardar as cinzas de minha mãe. Todas eram grandes e feias. Uma
reproduzia o caixão horrendo e tosco em que ela estava. Optei por uma
caixa de madeira natural, porque ela odiava imitações. O problema era a
cruz numa das laterais. Nos últimos anos, Paulina estava tão aborrecida
com Deus que meus primos ficaram com receio de me contar que tinham
encomendado uma missa.


Concordei com a cremação por não ter outra opção. Meu irmão mais
velho contou que Paulina sempre dizia que queria ser cremada, mas eu
não me lembro disso. O aluguel do caixão terminava pouco antes do
ritual. Então, os familiares mais próximos foram chamados para conferir
a identidade do morto. Eu não esperava ver minha mãe exposta ali, fora
do caixão, às portas do forno, totalmente desprotegida, como se estivesse
dormindo. Não consigo definir bem o que senti, foi mais forte do que
tudo, como se a tristeza, a dor, o desespero e a revolta se manifestassem

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