Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

C


ao mesmo tempo em mim, com grande intensidade. Meus primos
tiveram que me arrancar à força daquele lugar horrível.


Tia Rosa, uma mulher sem instrução que criou cinco filhos, entendeu de
forma intuitiva que, com a morte de meu pai e de minha mãe, com a
mudança de meus dois irmãos para o Chile, a Venezuela e a família
poderiam se tornar para mim uma abstração. “Filha, você tem que voltar,
porque aqui continua tendo sua família, sua casa e seu país”, me disse
ela, pouco depois do velório, lançando mão de seus dons de mãe
protetora para ressignificar meu vazio. Desde então continuamos a
conversar por telefone todas as semanas, numa aproximação que minha
mãe talvez aprovasse.


Demorei a tomar uma decisão sobre as cinzas, não sabia o que fazer,
foram dias em que eu não tinha muito controle sobre as coisas nem sobre
mim mesma. Não podia levá-las comigo para o Brasil porque isso exigiria
um trâmite burocrático impossível de fazer naquele momento. Como
meu irmão Pablo queria conservar as cinzas, tia Rosa fez uma espécie de
altar e colocou-as ali, com uma foto de mamãe, uma vela que fica sempre
acesa e um copo com água para as almas do purgatório.


aminho com meu sobrinho em Maracaibo, em direção à casa onde
cresci e de onde me mudei há quinze anos. Toda vez que vinha de
visita, minha mãe me recebia com “um cafezinho com leite”, como
ela dizia, e algum doce.


Para proteger os seus braços já muito curtidos pelo sol, Juan Pablo veste
uma malha, apesar de fazer 30 graus. É meu sobrinho mais próximo, ou o
menos distante. Depois da morte da avó, Juan Pablo começou a me
escrever com frequência e, embora tímido e monossilábico, tornou-se
uma presença constante. Durante nossa caminhada de 3 quilômetros, ele
me explicou como baixar séries ou músicas em plataformas alternativas e
como fica irritado quando sua mãe o impede de sair sozinho, com medo
de que algo aconteça a ele.

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