Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

Algumas calçadas têm tanto lixo que precisamos caminhar no meio da
rua, mas o risco de ser atropelado é praticamente zero, já que quase não
passam carros. Vemos uma loja aberta, depois um semáforo funcionando.
A luz voltou ao bairro, talvez à cidade inteira. Algumas pessoas sentadas
na frente de suas casas ou das lojas insultam Maduro ou desenvolvem
teorias sobre os apagões. Mas o silêncio predomina. Parece um domingo.


Chegamos à casa de minha mãe, e de fato há luz. Ligo o ar-condicionado.
As caixas ainda têm água. Incrível. Parece que escuto a voz de Paulina,
dizendo: “Viu só? Minha casa é muito bem-feita, por isso nunca quis me
mudar para um apartamento.” E ela tinha razão, devo reconhecer de
novo. (Como era difícil eu dar razão a ela, e agora não faço outra coisa.)
Aproveito para tomar um banho e, pensando em Júlia com certo remorso,
lavo a cabeça.


Convenço Juan Pablo a me ajudar a abrir as caixas com livros e discos
que deixei quando fui embora da Venezuela. Logo descubro que os
cupins se apossaram de tudo, atacando com especial sanha os livros de
Francisco Herrera Luque, um dos melhores escritores do país, de quem
meu sobrinho nunca ouviu falar e cujos principais romances históricos eu
li nas aulas de castelhano quando era mais nova do que ele. Cem Anos de
Solidão e O Outono do Patriarca, de Gabriel García Márquez,
sobreviveram, mas também não estão entre as referências de Juan Pablo,
que apenas ouviu falar do autor colombiano. Ele me promete que vai ler
esses livros, bem como alguns outros de seu avô, morto faz um quarto de
século e de quem herdou o prenome.


Depois de meu sobrinho escolher alguns livros e eu guardar os que vou
trazer comigo, levamos o restante para a frente da casa, onde vou
acumulando o lixo à medida que limpo os quartos e mergulho em
lembranças.


Juan Pablo me traz de volta à realidade ao avisar que tem gente na frente
da casa. Vejo duas mulheres com um menino tentando enfiar as mãos por
entre a grade para alcançar as caixas. Perguntam se vou jogar aquilo fora.
Respondo que sim, mas só mais tarde. Elas pedem as caixas, e eu explico
que contêm apenas livros com cupins e lixo. Dou a elas umas blusas e,
para o menino, uma bola. Elas insistem em pedir as caixas. “Com certeza

Free download pdf