Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

tem alguma coisa”, dizem. O quarteirão está praticamente vazio e, por
isso, decido não abrir o portão. Tenho medo que a situação saia do
controle. Acabo convencendo-as a ir embora. Mais tarde, coloco tudo na
calçada e em menos de cinco minutos surgem três pessoas, que começam
a vasculhar tudo.


Quando termino a limpeza, a casa me parece bem menor. Meu sobrinho
sorri pela primeira vez quando proponho tirarmos uma selfie para
mandar para seu pai, que ele não vê há dois anos. A companhia de Juan
Pablo amenizou minhas emoções e me impediu de chorar ao voltar à casa
de minha mãe. Ele me fala de sua rotina, de como se sente pobre por não
ter Netflix e da garota de quem gosta, Maria, que não sabe dos
sentimentos dele. Tento reduzir sua frustração e lhe apresentar alguma
perspectiva. Conto que, quando o pai dele e eu éramos pequenos,
tivemos que ajudar em casa e passamos por poucas e boas. Mas logo
percebo que nada disso interessa a ele, pois estamos em outra Venezuela,
que parece não ser uma continuação daquele passado. Naquele tempo,
ainda se podia dizer que a vida no país “era dura, diferente e feliz”, como
canta Joaquín Sabina.


Na hora de me despedir da casa, evito maiores cerimônias para não
mortificar Juan Pablo com meu luto. Antes de ir embora, atravesso a rua
para conversar com Enrique, o herdeiro da oficina mecânica em frente,
tempos atrás o comércio mais movimentado e luxuoso do quarteirão. Ele
me conta que agora só tem um cliente. “Sua mãe não teria aguentado
isso”, diz, se referindo aos apagões sucessivos. Ele pensa que Paulina
ainda está em San Cristóbal, pois resolvi não contar aos vizinhos sobre a
morte dela, para evitar que a notícia da casa abandonada se espalhasse e
pudesse haver um saque ou mesmo uma invasão.


Enrique e eu nos conhecemos faz muito tempo, mas é a primeira vez que
trocamos algumas palavras para além de um tímido cumprimento.
Temos a mesma idade, mas éramos de classes sociais tão diferentes que
parecia estarmos separados por uma rua imensamente larga e impossível
de ser atravessada. Meus pais não tinham dinheiro para serem clientes da
oficina dos pais dele, que circulavam pela cidade com carros do último
tipo e moravam num prédio de luxo à beira-mar. A crise também não os
perdoou. A última vez que ele trocou sua caminhonete foi há muitos

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