Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

d’água durasse muitos dias. “Hora do plano Z”, ela proclama. Júlia tenta
disfarçar, mas é claro que está aflita por não saber onde vai arrumar água
amanhã.


Sugeri que ela se mudasse com o filho para a casa da minha mãe, que às
vezes recebe água de rua. Mas Júlia recusou a oferta, alegando que não
quer ficar isolada numa rua onde quase não há mais vizinhos e fica longe
do seu trabalho e da escola de Juan Pablo. Eu temo que a casa seja
saqueada, de modo que gostaria muito que ela se mudasse, mas entendo
seus motivos. Uma das poucas vizinhas que não abandonaram o bairro e
era próxima de minha mãe cuida agora da casa. Ela é a única na rua a
quem contei que minha mãe não voltará mais.


Júlia começa a amassar a farinha para fazer mandocas, uma espécie de
biscoito doce frito em formato de U que é servido com queijo – quitute
tradicional de Maracaibo que eu nunca comia em casa, porque minha
mãe, natural dos Andes, não sabia como prepará-lo. O WhatsApp da
minha cunhada fervilha. “O estado de Zulia está na ponta da rede
elétrica, por isso a energia demora mais para voltar aqui”, diz um primo.
Outro opina que “a eletricidade não tem a força necessária, por isso não
chega aqui para nós”. Uma vizinha grita que a luz voltou num município
vizinho. Para matar o tempo, jogamos baralho.


À tardinha, vemos as luzes acesas no conjunto residencial em frente, do
outro lado da rua. Júlia comemora, para ela significa que a qualquer
momento a energia elétrica chegará também à sua casa. “Dentro de umas
duas horas, a eletricidade deve chegar também no nosso prédio”, ela
calcula. Mas, menos de uma hora depois, a luz no conjunto residencial da
frente se apaga. “Era minha esperança. E agora?”, lamenta. Tudo não
passa de uma grande loteria.


Júlia sente um mau cheiro saindo da geladeira e tira fora o arroz e as
lentilhas, que estragaram. Depois de comermos arepas com o queijo
restante, sentamos mais uma vez no corredor para conversar. Falamos de
minha mãe, da mãe dela, que morreu há mais de dez anos, de câncer.
Falamos de meu irmão, revisitamos histórias e brigas. Já faz cinco dias
que estou em Maracaibo, nunca tínhamos passado tanto tempo juntas.

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