Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

P


E isso nem era o pior: o anestesista só havia liberado o meu café da
manhã às 7h25, pois prescrevera um jejum de seis horas após a anestesia.


or trás dessa discussão sobre violência obstétrica e autonomia da
gestante não há apenas uma questão de lucro hospitalar e
prepotência dos profissionais de saúde, mas de considerar a mulher
incapaz de raciocinar claramente e de tomar decisões por si própria.
Durante a gravidez, o parto e o pós-parto, institui-se uma relação
hierárquica na qual a mulher é tratada como um objeto (patológico) de
intervenção profissional, e não um sujeito pensante. Esse comportamento
paternalista e autoritário é também reproduzido por obstetras e
enfermeiras do sexo feminino.


Prova disso é o tratamento infantilizado dado a gestantes e puérperas nos
consultórios e hospitais, algo que pude atestar nos dois dias que fiquei
internada no pós-parto. Um exemplo: somos muitas vezes chamadas de
“mãe” e “mãezinha”. O que algumas mulheres julgam ser carinhoso é, na
verdade, pura condescendência. Quando um profissional nos dirige a
palavra dessa forma, está a suprimir uma identidade complexa e nos
reduzir ao papel social de mãe, como se essa fosse nossa característica
mais relevante.


É curioso notar que esse apelo à função materna geralmente ocorre
quando se deseja a nossa resignação à dor ou a aceitação de algum
protocolo médico-hospitalar. No meu caso, quando anunciaram que o
café da manhã só viria dali a mais de duas horas, chorei de raiva e de
exaustão. “Estou há mais de um dia sem comer!”, exclamei. Nem água
queriam me dar. A enfermeira pareceu compungida e comentou: “Moça
bonita não chora.” Ela foi consultar o anestesista e, na volta, me
chamando de mãe, reiterou a prescrição do jejum. Alegou que, se eu me
alimentasse naquele momento, corria o risco de vomitar.


Eu disse que assumia esse risco e ela respondeu que o médico não havia
dado autorização. Insisti e consegui que o café fosse servido por volta das
seis e pouco. “Se você vomitar, a culpa vai ser sua, tá?”, ela ainda avisou,
como se eu tivesse 8 anos de idade.

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