A arte rupestre de
que (ainda) não se fala
TEXTO E FOTOGRAFIAS DE HUGO MARQUES
Imagine um pequeno grupo de pessoas
na Idade do Bronze (entre cerca de 2500
a 1500 a.C) reunidos em frente de uma
alongada e baixa cavidade granítica
na sub-região entre o Sabor e o Douro.
Semiescondidos e quase deitados no
espaço apertado da cavidade, mas muni-
dos de pequenas ferramentas líticas,
iniciam a gravação de um conjunto de
formas geométricas e antropomórficas,
utilizando técnicas de picotagem e abra-
são que resultarão num dos mais belos
exemplos de arte esquemática do territó-
rio a norte do Douro. Nunca saberemos
os significados concretos atribuídos a
cada símbolo, mas podemos conjecturar.
Os tempos dos caçadores-recolecto-
res do Paleolítico Superior no vale do
Côa já passaram há muito e, neste ter-
ritório, prosperam agora comunidades
agropastoris, com modos de vida seden-
tários. Apesar dessa enorme mudança,
a ligação do homem ao simbólico con-
tinua a persistir e estes traços repetem-
-se por muitos sítios arqueológicos na
Península Ibérica. Esta demonstração
de uma cultura própria, mas também
partilhada nos seus símbolos, indicia
contactos entre os grupos humanos.
Passados 4.500 anos, os dedos de
Maria de Jesus Sanches, docente da
Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, percorrem com suavidade as
linhas e pequenas covas que se cruzam
neste abrigo pré-histórico. O abrigo da
Solhapa na freguesia de Duas Igrejas,
no concelho de Miranda do Douro, foi
dado a conhecer em 1955 pelo padre
António Maria Mourinho, apaixonado
por arqueologia e etnografia que, tal
como o abade de Baçal (que tratava
por mestre), se dedicou à divulgação
do património cultural transmontano.
O trabalho desta investigadora debru-
çou-se sobre as formas ali representadas.
Utilizando diversas técnicas de contraste
cromático, foi possível definir melhor
os elementos representados no granito.
Entre pequenas covas e sulcos, que têm
em si significado simbólico desconhe-
cido, identificam-se figuras humanas
antropomórficas e de cariz sexuado,
dada a exibição fálica, e um equídeo
possivelmente montado por um cava-
leiro, que poderá estar a pisar alguém.
A vida destas pessoas estava muito
mais ligada aos ciclos da natureza, e a
explicação dos factos naturais, ou até de
eventos heróicos, que é hoje mais cien-
tífica, seria no passado mais simbólica,
ou sobrenatural. As tentativas de repre-
sentar e apelar a esse mundo pouco
conhecido expressam-se em vários
sítios arqueológicos que começam
agora a redefinir a nossa compreensão
da ocupação deste território.
O ABRIGO DO PASSADEIRO, em Pala-
çoulo, no concelho de Miranda do Douro,
conflui com uma pequena linha de água.
Foi ali que se encontrou a imagem de um
cervídeo realizado seguindo a técnica
de picotado fino, com uma datação que
poderá recuar até ao Mesolítico (cerca
de 7000, 6000 a.C.). Das representações
de veados, auroques e cavalos, muito
comuns no Paleolítico Superior (
a 10000 a.C.), só os veados prosseguiram
em períodos mais recentes. A relação
do homem com o mundo natural não
se perdeu apesar das grandes trans-
formações nas sociedades humanas.
“UNHADAS DO DIABO”, PICOTADOS, GRAVURAS – HÁ UM MUNDO
DE ARTE PRÉ-HISTÓRICA QUE COMEÇÁMOS AGORA A DESCOBRIR
EXPLORE | ARTE RUPESTRE
NATIONAL GEOGRAPHIC