National Geographic - Portugal - Edição 218 (2019-05)

(Antfer) #1

NATIONALGEOGRAPHIC


O


O DIA NASCE NO ESTUÁRIO e os primeiros raios de sol
começam a dourar a paisagem. De galochas e fatos de
espeleólogo enlameados, com passo apressado, vários
vultos dirigem-se para a margem da ria de Alvor. O lodo
acinzentado já foi coberto por uma fina camada de água.
Não serão muitos os caminhantes a aventurar-se por
um trilho que promete lama, lama e mais lama.
A urgência nota-se nos olhares inquietos e rostos
franzidos: a maré está mais alta do que o previsto e
corre-se o risco de a entrada da gruta Ibn’Ammar e do
lago interior já estar inacessível. Esta é uma das prin-
cipais cavidades do sistema subterrâneo do Algarve,
que foi classificado em 2016 como hotspot mundial de
biodiversidade cavernícola pela “Science”, uma das
mais importantes revistas científicas.
De cabelo arruivado sob o capacete, a bioespeleóloga
da Universidade de Copenhaga Ana Sofia Reboleira
explica que são poucos os locais na Terra com essa
designação, significando que, numa dada gruta, exis-
tem pelo menos vinte espécies cavernícolas diferentes
terrestres ou aquáticas. Nos últimos anos, o Algarve
tem proporcionado surpresas. Novas espécies para a
ciência têm sido descobertas a um ritmo alucinante.
Numa zona onde são muitos os interesses económicos
em colisão com a conservação da natureza, as ameaças
acumulam-se e a urgência do estudo destas diminutas
e elusivas espécies cavernícolas cresce.
Em comum entre estas descobertas, destacam-se as
adaptações evolutivas encontradas. Muitos destes
organismos mudaram para sobreviver num habitat tão
agreste e diferente como o das grutas. Alguns sofreram
despigmentação, o que os tornou maioritariamente
pálidos; noutros, registou-se degeneração das estru-
turas oculares por não haver luz solar. Em compensa-
ção, ganharam um acentuado alongamento dos
apêndices (antenas, patas, pinças).

O melhor e maior exemplo (literalmente!) é o pseu-
do-escorpião gigante das grutas do Algarve (Titano-
bochica magna), que os investigadores carinhosamente
designam por “gigante do Sul”. Tudo é relativo: um
adulto pode medir 30 milímetros de envergadura, com
pinças poderosas e uma mordedura venenosa, que o
torna um superpredador à sua escala – talvez compa-
rável ao Tiranossaurus rex em terra, contemporâneo
dos antepassados deste pseudo-escorpião. As origens
da família Bochicidae, a que pertence, remontam ao
Jurássico, há 170 milhões de anos, antes ainda da sepa-
ração continental, como atesta o registo fóssil. Agora,
no ambiente escuro para o qual a evolução o dotou
de armas decisivas, o Titanobochica magna é também
uma fera.
Apesar de o pseudo-escorpião ter maravilhado a
comunidade científica pela dimensão e espectacula-
ridade morfológica, ele tem companhia: o peixinho-
-de-prata Squamatinia algharbica, primo afastado dos
que habitam nos interstícios de nossas casas, foi tam-
bém recentemente descoberto. E, na saída de campo
fotografada para esta reportagem, foi recolhido um
grande exemplar de centopeia, que deverá ser breve-
mente descrita como nova espécie para a ciência. Será
a primeira centopeia cavernícola de Portugal.

ESTE CAMPO CIENTÍFICO tem avançado a galope nos
últimos anos em Portugal. O número de espécies
conhecidas no nosso país triplicou. No Algarve, está
identificada uma dezena de cavidades, mas o facto de
se encontrarem espécies semelhantes em diferentes
locais sugere que o sistema de grutas é muito vasto,
embora as ligações entre si ainda não sejam conheci-
das. Pelo país, há outras zonas importantes para a bio-
diversidade cavernícola, como a Arrábida, Montejunto
e as serras de Aire e Candeeiros e Sicó.
Um dos projectos internacionais em que Portugal
participa denomina-se “HiddenRisk”. Segundo Ana
Sofia Reboleira, “buscamos compreender os impactes
das actividades humanas nos ecossistemas subterrâ-
neos e avaliar a importância destes para a saúde
pública”. Apesar de quase invisíveis e pouco apelativos
para o público, o seu papel é fulcral e influencia-nos
globalmente: 97% da água disponível para consumo
humano provém de aquíferos de profundidade (esse
valor ronda os 50% em Portugal).
Nas palavras da bióloga, “os animais subterrâneos
são responsáveis pela reciclagem da matéria orgânica
que se infiltra até aos lençóis freáticos, garantindo
a qualidade da água e o seu equilíbrio ecológico”.
Esse processo é fundamental “para a agricultura, flo-
restas, nascentes e fontes. São mesmo importantes
para nós!”, acrescenta.

Na ria de Alvor, o grupo de bioespeleólogas progride
em direcção à gruta de Ibn’Ammar, cujo lago interior
(em baixo) alberga espécies aquáticas responsáveis
pela purificação das águas superficiais. A cada saída
de campo, a probabilidade de descobrir novas
espécies para a ciência é elevada.

GRANDE ANGULAR | BIODIVERSIDADE

Free download pdf