Folha de São Paulo - 13.03.2020

(ff) #1

aeee


cotidiano


Todavezque meu maridoavi-
sa que precisamos visitar seu
tio-avô,minha gargantaau-
tomaticamenteinflama, meu


nariz entopeemeucorpo fi-
cadoloridoepesado.Até co-
nheceressesenhor,eunão sa-
bia que um ser humano po-
deria sertãochatoaponto
de instaurar em mim um me-
canismo de defesa chamado


“virose emocional”.Oapelidei
recentementede“coroavírus”.
Trata-se de um homem bas-
tanteculto,conhecidoentreos
familiarespor ser uma enci-
clopédia viva. Isso poderia ser


bom, maséumhorror.Ades-
graçadovovônão paraumse-
gundo defalar.Eneméesse o
maior problema.Oque otorna
insuportável sãoas digressões.
Imagine quevocêanda bem
cansado,atolado decoisas pra
resolverecompletamentesem
tempo pranada. Entãovocê,
parado nofaroldaHenrique
Schaumann,lembraquepre-
cisa dar um pulo na ruaTuri-
assu praresolver uma burocra-
cia qualquer.Dáumsoquinho
novolante e, humilhado pelas
obrigações,colocaoendereço
noWaze.Descobreentão que,

pela Sumaré,otrajetoéprati-
camenteuma linharetaedura
apenas 11 minutos.Você sorri de
leve epensa “eu aguento”.Eas-
simavida segue: uma tremen-
da chaticeque,com pequenas
pausas quandocomemosdo-
ce,dormimos,vemosoJeremy
Strong ou beijamosanucasua-
da de um filho, dápraaguentar.
Mas, quando visitoaBarsa
ambulante,asituaçãomuda de
figura. Imagine quevocêanda
bemcansado,atolado decoi-
saspraresolverecompleta-
mentesemtempo pranada.
Entãovocê,paradonaporta

dacasa dessevovôfalador-pas-
sa-mal,lembraquevaiter de
aturá-lo atébem depois daso-
bremesa(porque, afinal decon-
tas, sevocêse levantar parair
emboraantes,ele vaicontinu-
arfalando do mesmo jeitoe
vocênãovaiconseguir sair).
Dá um soquinho nacampai-
nhae,humilhadopelasobri-
ga ções,pergunta “comovaio
senhor?”.Descobreentão que o
solcomeçoualhe dar alergias.
Eele vaitemostrar asferidas
quandoserecordadoeclipse
totaldosol dos pré-socráticos.
Etudo bem,vocêaguentaria

seguir umtantopela linhaGré-
cia Antiga, masTales de Mile-
tolhe lembrou magnetoque
lhe lembrou quearessonância
magnéticado Einsteinestava
quebrada.Túnel.Dotempo.O
Tempo na mitologia.Devora-
vaos filhos.Seusfilhoscomi-
am mal quandoeram peque-
nos.Hojeemdia omaisvelho
estágordo.“Gordo não! Gordi-
nho!Nosso filho...” Mas ele não
deixaaesposacontinuar.Oque
mesmoele dizia?Luz no fim do
túnel. Condomínio agoravem
comacobrançadeluzembu-
tida,oqueépéssimo porque
ele perdeuocontrole do quan-
toaempregada gastanoba-
nho.Mas sim,aalergia.Eele
vaimostrarondecoça.Contu-
doo“arro-gagá-ante” abaixa
pralevantaraperna dacalça
esentetravarascostas. Ciáti-
co olembracianureto. Eu pen-
so “entãotoma uma dose”.Ah,
sim,TalesdeMileto.Ah, sim,
travar.Travasnas portas para

obebê não abrirepegaruma
faca,ele me aconselha. “Sim,
eu sei, eutenho.” “Temoquê?
Dornascostas?”Eujánem
sei mais. Nenhumaconversa
atingesequerasegunda linha,
que diráchegaraofim.Vem
asobremesa.Ele queriacon-
taroquê mesmo?“A alergia!!!”
—eugrito.Ovelho nãoperce-
beoquantoéautorreferentee
egoísta. Elediz que em 2040 ,em
suafestade 100 anos,vaideixar
agentefalar um pouco. Boceja-
mos.Todostêmsíndrome das
pernasinquietas ao seu lado.
Ele segue solando.Pra
quem?Evai ficandocadavez
maisangustiado porque sabe
que abriu emtorno de si 782
janelas que nuncavai serca-
pazdefechar.Quasemil pseu-
dotemasque morreram antes
de setornar um assunto.
Imagine quedaHenrique
SchaumannàTuriassu leve
dos pré-socráticos até 2040.
Você iria?

Nenhumaconversa atingesequerasegunda linha, que diráchegar ao fim



  • Tati Bernardi


Escritoraeroteiristadecinemaetelevisão,autorade“DepoisaLouca SouEu”


Digressãofobia


|dom.Antonio Prata|seg.TabataAmaral,Thiago Amparo |ter.VeraIaconelli|qua.Ilona Szabó de Carvalho, Jair oMarques |qui.SérgioRodrigues |sex.Tati Bernardi|sáb.OscarVilhena Vieira,LuísFranciscoCarvalho Filho


Aescolaestadual Raul Brasil,emSuzano,que foipalcodemassacreem2 019 eretomaráatividades no mês de abril, passa por obrasereformas ZanoneFraissat/Folhapress



Aburocracia
atrapalhou[a
contrataçãode
psicólogospara
atenderàpopulação
de Suzano]. Masépor
isso queeucoloquei
no meugabineteessa
portametralhada
quefoi retiradada
escolaparaagente
nuncaseesquecer
queepisódios
comoodaRaul
Brasilnão podem
voltaraserepetir

Rossieli Soares
secretárioestadual deEducação


  • DhiegoMaia


sãopauloOmassacredeSu-
zano,maioratentadocontra
uma escola públicadeSão
Paulo,completaumano nesta
sexta-feira( 13 ).Oepisódioge-
rouumademanda:como cri-
ar ambienteseguroede bem-
estarnos colégiossem aprisi-
onar alunoseprofessores?
Aescola alvodomassacre,
aRaul Brasil, tinhaoportão
abertoparasuacomunidade
de Suzano,cidade da Grande
SãoPaulocom pouco mais de
297 milhabitantes.
Tantoéqueosatiradores
GuilhermeTaucci, 17 ,eLuiz
Henrique de Castro, 25 ,en-
trarampelaportãosem pro-
blemas.Foramrecepciona-
dos pelacoordenadoraMari-
lena Umezu, 59 ,tidacomo “o
coraçãodocolégio” pela do-
çura como tratava os alunos.
Elafoiuma das primeiras
amorrer.Outros cincoalu-
nosemais uma funcionária
tambémforamassassinados
atiros. Antes de chegaremà
escola,adupla deatiradores


havia matado um empresá-
rio,tio de Guilherme.
Ao final do massacreeper-
cebendoachegada da polícia,
Guilhermematou seucom-
parsaesesuicidou.Amaior
medida pós-massacretoma-
da porRossieliSoares, secre-
tário de Educaçãodagestão
Doria (PSDB),foireformar o
prédio docolégio.
Os locais em queosalunos
forambaleadosemortosga-
nharam nova caraparame-
lhoraroclima escolar.
Para as obras,foramcapta-
dosR$ 2 , 7 milhões da inicia-
tivaprivadaeoutros R$ 400
milderecursosdasecretaria,
um modelo de parceria públi-
co-privada que poderáser re-
plicada em futuros projetos.
Em abril, os 1. 072 alunos
—número 10 , 5 %superior ao
registrado em 2019 —vão en-
contrar uma Raul Brasilcom
novosprédios,novaquadra
esportiva, salasmaisamplas
eumlaboratório maker(es-
paço que estimulaoaprendi-
zado por meio datecnologia).
Só apósomassacre aesco-

la conseguiráver de pé uma
demanda antiga:uma bibli-
otecacom espaçosuficiente
paraabrigar aulas de leitura
paraumaturma inteira.Oes-
paço anteriorera minúsculo.
“Por queareformadaes-
cola não chegou um ano an-
tes?”,perguntaJussaraMelo,
56 ,professora da Raul Brasil
que se aposentouao adqui-
rir sequelasemocionais de-
correntes doatentado.
“Eu li que as pessoas defo-
ra da escolaterãoacesso ape-
nasàsecretaria daescola.E
que os estudantesterãoen-
tradaesaídaexclusivas.Es-
sassãodemandas nãosóda
Raul Brasilmas detodaarede
escolar”, afirmaMelo.
Rossielidiz que seu desafio
pós-RaulBrasilédotamanho
do Uruguai.“Estão sobami-
nharesponsabilidade uma po-
pulação igualàdopaís vizinho
[ 3 , 4 milhões de habitantes]”.
ApastadaEducação traba-
lhaemduas frentes: na escu-
ta dos alunosenaaplicação
de projetos pró-segurança.
Um questionáriorespondi-

do por 1 milhão de estudantes
darede em novembrode 2019
detectou, porexemplo,que o
maiorproblema enfrentado
por criançaseadolescentes
éocyberbullying,umassé-
dio virtual praticadocontra
uma pessoa por meio de pla-
taformas online.
Os demaisresultados da
pesquisa, ainda não divulga-
dos, servirão de baseparaes-
truturaroConvivaSP, progra-
ma que prevêatacarocorrên-
cias de automutilaçãoesuicí-
dio entre os estudantes.
Pensandonasaúdemental
dos professores,asecretaria
planejacontratar 85 psicólo-
gosquejá atuam narede es-
tadualcomo professoresnos
programas deformação.“Não
temos dinheiroparacolocar
um psicólogoemcada uma
das 5. 400 escolas”, dizRossieli.
Apesar de polêmica,osecre-
táriotestaapresençadaPolí-
cia Militarno ambienteesco-
lar.Nestesemestre, um pro-
grama-pilotoérealizado na
escola Caetano de Campos,
nocentro dacapital paulista.

MassacredeSuzanofazumanocom


escolaatenta aproblemasesegurança


Com 90% dareformaconcluída,Raul Brasilretoma atividades em abril, agoracom portãofechado


“O policial não ficafardado
nem armado”, diz.“Maséele
quemestácriando juntocom
professoresealunos os proto-
colos de segurançadaescola”.
“Parecebanal,mas nóstemos
queformularregras desdeco-
mo quandooportão da esco-
la deve seraberto efechado e
emquaiscasosaPMprecisa
ser acionada.Isso aindanão
está desenhado”,conta.
Outrainiciativacriada por
Rossielifoierguer no andar
abaixodeseu gabineteumga-
bineteparagerenciamento de
crises.Olocalécompostopor
PMs,sociólogos, psicólogos e
educadores quemonitoram
emtemporeal todas asocor-
rências policiaisregistradas pe-
las 8. 400 câmeras nas escolas
que estão integradasaos siste-
mas das autoridades policiais.
“Uma ocorrênciade violên-
ciaépolicial, maséessaequi-
pe que prestaosuporteparaa
comunidadeescolar afetada.”
Paraosecretário,omaior
errodesuagestão nacondu-
çãodomassacre da Raul Brasil
foiademoranacontratação
de psicólogos paraatender à
população de Suzano abalada
pela violência, quefoiestima-
da em 24 milpessoas,segun-
doaprefeituradacidade.“A
burocraciaatrapalhou.”
“Masépor isso que euco-
loquei no meugabineteessa
portametralhadaquefoire-
tirada da escola paraagente
nuncaseesquecerque epi-
sódioscomoodaRaul Brasil
não podemvoltaraserepetir”.

B6 SEXTA-FEIRA, 13 DEMARÇODE 2020

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