O Estado de São Paulo (2020-05-16)

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 16 DE MAIO DE 2020 A


Cloroquina vitima 2 ministros


SERGIO


CIMERMAN


A


sociedade e a comunidade
médica receberam ontem
mais uma triste notícia: a de-
missão do ministro Nelson Teich
em meio a uma crise de saúde ja-
mais vista no País. Menos de um
mês à frente da pasta e, sem habilida-
de e força para dialogar com nosso
presidente, a gota d’água foi prova-
velmente a cloroquina.
Considerada uma droga que pode-
ria ajudar a combater a doença, hipó-
tese por enquanto afastada em pes-
quisas, ela já “matou” dois minis-
tros: um que falava e brigava incan-
savelmente. Caiu por causa da ciên-
cia. O outro ministro ainda desenha-
va algo, apesar das dificuldades des-
de o primeiro dia. Importante neste
ponto informar: nenhuma socieda-
de médica científica e muito menos

a OMS embasam a administração da
cloroquina. Neste momento, já exis-
tem estudos clínicos mais robustos
que não notaram qualquer benefício
com seu uso. Não se verificou redução
da mortalidade ou pelo menos menor
tempo de internação. O uso está sub-
metido a protocolos clínicos de pesqui-
sa e administração com consentimen-
to dos parentes, apesar de inúmeros
centros adotarem como uma linha de
tratamento para a covid-19.
O ex-ministro, agora, apesar de falta
de ânimo em brigar por inúmeras ques-
tões, não suportou que a ciência fosse
superada pela política. Fizeram valer
seus anos de aprendizado na Faculda-
de de Medicina, não se curvando a deci-
sões meramente políticas. A questão
que ronda nossas cabeças: quem virá?
Sem dúvida alguém que tenha este

mesmo viés do presidente em acredi-
tar que a cloroquina resolverá todos os
problemas, independentemente do
quadro clínico: de leve a grave sendo
usada em larga escala. Estamos, agora,
fazendo um paralelo com a nossa
maior paixão nacional: o futebol. Co-
mo ele está parado, todos só comen-
tam da cloroquina, com torcida a favor
e contra. Tínhamos 200 milhões de téc-
nicos de futebol e agora temos 200 mi-
lhões de infectologistas.
Se este não fosse o único problema,
vamos voltar à discussão do isolamen-
to vertical. Este modelo não existe. Na-
da foi publicado como essa recomenda-
ção. Certamente vamos ceifar vidas
nas próximas quinzenas a partir do iní-
cio dessa medida. A economia vai retor-
nar, porém não sabemos o pior que po-
derá estar por vir. Temos de atentar
que países que modificaram suas con-
dutas do isolamento/distanciamento
social colheram resultados péssimos
no tocante à mortalidade, e a medida
teve de ser revista em caráter de urgên-
cia. Isso levou ao fechamento por com-
pleto (lockdown). Aí sim viveremos
dias obscuros: agressividade por parte
da população, ordens de prisão, rou-
bos, entre outras situações.

Precisamos ter uma concordância
entre os governos federal, estadual e
municipal em protocolos de ação con-
junta. Não se pode fazer da cabeça de
cada governante um tipo de isolamen-
to. Me preocupa em demasia que va-
mos perder as rédeas e assim a curva
só tenderá a subir, levando de vez a
um colapso do sistema hospitalar, so-
bretudo das unidades de terapia inten-
siva.

O novo ministro deveria ser escolhi-
do como um cargo técnico e temo que
isso não será levado em consideração
neste momento. O general Pazuello es-
tará de modo interino até que se acal-
mem os ânimos. Precisamos de um ges-
tor neste momento. Alguém de pulso e
não uma marionete que possa atender
a interesses políticos. Alguém que co-
nheça o Sistema Único de Saúde
(SUS), a fim de trazer consigo uma
equipe para construir algo inovador e
de resolutividade.
Difícil não é. Existem vários médi-

cos altamente capazes de fazer este
serviço à pátria. O novo ministro de-
verá propor uma testagem laborato-
rial ampla para visualizarmos nossa
real situação epidemiológica. Claro
que existem inúmeras dificuldades,
mas temos de realizar ações. Come-
çar nas favelas seria o ideal.
Nesses locais pode estar a ponta
do iceberg. Pessoas que moram em
espaço reduzido com seis, sete pes-
soas juntas. Como isolar um caso
se for covid-19 positivo? Seria um
rastro de pólvora. O governo deve-
rá pensar em usar escolas públicas
para que funcionem como atenção
primária, tirando estes indivíduos
do convívio e oferecendo cuidados
necessários.
Enfim, perdemos um mês de com-
bate adequado à pandemia. Espero
que sejamos contemplados com al-
go que seja efetivo para nossa popu-
lação. Que a escolha do cargo seja
técnica e possa trabalhar com liber-
dade. Vamos a mais uma luta. So-
mos um povo que não foge à luta.

]
EX-PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEI-
RA DE INFECTOLOGIA

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


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Desorientação no ministério dificulta


combate à covid, dizem especialistas


lPrejuízo
“Essa política está
matando pessoas. A
mudança é inoportuna,
inconsequente e
inconcebível: jamais
poderia acontecer neste
momento, não leva em
consideração as
consequências letais, e
não tem razão lógica.”
Roberto Medronho
COORDENADOR DA FORÇA-TAREFA
DA UFRJ CONTRA A COVID-

Risco de ambiguidade no discurso é desencorajar ainda mais a população a aderir ao isolamento, única estratégia disponível para conter


a doença no País. Mudanças no comando da Saúde também atrapalham adoção de medidas coordenadas para gerir leitos e profissionais


Sob risco. Centro de Florianópolis tem grande movimentação; especialistas temem tragédia sanitária se o próximo ministro acabar com a quarentena como quer o presidente Bolsonaro


Entre troca de ministros, País registra avanço de 666% nas mortes. Pág. A16 }


Gonçalo Junior
Roberta Jansen


A desorientação política que
tomou conta do Palácio do
Planalto e levou à troca de
dois ministros da Saúde em
menos de um mês pode ter
um impacto avassalador na
resposta governamental à epi-
demia de covid-19 – o maior
desafio de saúde pública já en-
frentado pelo Brasil. Especia-
listas dizem que a crise revela
o despreparo do atual gover-
no para lidar com a pandemia
e pode provocar um total co-
lapso sanitário no País. Eles
temem que o novo titular da
pasta ponha fim ao isolamen-
to social, como quer Jair Bol-
sonaro, levando a um vertigi-
noso aumento do número de
casos e mortes.
“Essa política está matando
pessoas”, diz o epidemiologis-
ta Roberto Medronho, coorde-
nador da força-tarefa da Uni-
versidade Federal do Rio de Ja-
neiro (UFRJ) contra a covid-



  1. “A mudança (de ministro) é
    absolutamente inoportuna, in-


consequente e inconcebível: ja-
mais poderia acontecer neste
momento, não leva em conside-
ração as consequências letais,
e não tem nenhuma razão lógi-
ca”, diz o especialista.
Como não há vacina nem tra-
tamento específico para a co-
vid-19, as únicas medidas reco-
nhecidamente eficazes contra
o novo coronavírus são o isola-
mento social e a lavagem fre-
quente das mãos. As iniciativas
são recomendadas pela Organi-
zação Mundial de Saúde
(OMS) e adotadas em todos os
países do mundo no enfrenta-
mento da doença – mesmo no
Reino Unido e nos Estados Uni-
dos, onde houve uma resistên-
cia inicial dos respectivos go-
vernantes. Ainda não há evidên-
cias científicas sólidas da eficá-
cia da cloroquina no tratamen-
to da covid; o outro grande pon-
to de disputa de Bolsonaro. O
presidente quer que o ministé-
rio recomende o uso da droga
no início da infecção, uma me-
dida que não tem o respaldo da
OMS e não foi aceita por Henri-
que Mandetta e Nelson Teich.

Para os especialistas ouvidos
pelo Estadão a ambiguidade
do discurso governamental foi
o maior empecilho para que
houvesse uma adesão mais con-
sistente da população brasilei-
ra às medidas de isolamento e
muito menos apoio para um
eventual lockdown nas cida-
des mais afetadas. “A conse-
quência direta é o abandono do
isolamento social, a única es-
tratégia eficaz no combate à
pandemia”, afirma Sidney Klaj-
ner, presidente do Hospital Al-

bert Einstein. “Com as trocas
no ministério e a ambiguidade
do discurso fica muito difícil
engajar a população. Isso com-
promete não só o combate à
pandemia, mas também às ou-
tras doenças, como cardiovas-
culares e oncológicas, por
exemplo.” A mesma questão
foi levantada no Estadão an-
teontem por Jamal Suleiman,
infectologista do Hospital Emí-
lio Ribas. “Quando tem esse ti-
po de dicotomia, acontece de a
pessoa ouvir aquilo que for
mais confortável.”
Para Mario Scheffer, vice-pre-
sidente da Associação Brasilei-
ra de Saúde Coletiva, não houve
uma coordenação nacional
nem com o ministro anterior da
Saúde, Luiz Henrique Mandet-
ta. Ele afirma que essa falta de
estratégia está na raiz das difi-
culdades no enfrentamento à
pandemia. “Muitos dos proble-
mas dos Estados e municípios
na falta de insumos, respirado-
res e equipamentos de prote-
ção, baixa expansão dos leitos
de UTI, dificuldade de contrata-
ção de médicos e profissionais

têm a ver com a ausência de dire-
trizes, de ações nacionais e libe-
ração insuficiente de recursos
pelo Ministério da Saúde”, diz o
professor da Universidade de
São Paulo (USP).

Sem coordenação. Enfermeira
especializada em gestão de saú-
de e integrante da força-tarefa
da UFRJ, Crystina Barros con-
corda com o colega. “Os municí-
pios estão agindo como podem,
mas sem suporte, sem uma rede
coordenada como deveria ser”,
sustenta. “O ministério deveria
ser o grande articulador, mas,
na medida em que isso não é
possível, perdemos uma oportu-
nidade de gestão eficiente de re-
cursos, leitos, profissionais e
medicamentos que poderia sal-
var vidas.”
Especialistas temem que a po-
sição contrária à ciência adota-
da por Bolsonaro tenha um im-
pacto negativo na escolha do no-
vo ministro. “Com suas qualida-
des e defeitos, os dois ministros
(Mandetta e Teich) estavam ou-
vindo a ciência, estavam tentan-
do adotar políticas que fazem

sentido do ponto de vista cien-
tífico”, avalia o epidemiologista
Pedro Hallal, reitor da Universi-
dade Federal de Pelotas. “Mas
eles não conseguem se manter
no cargo por pressão do gover-
no, representado pelo presiden-
te, para que não se ouça a ciên-
cia. O que estamos vivendo é
um embate constante entre a
ciência e a negação da ciência e
acho pouco provável que o go-
verno consiga um ministro da
Saúde respeitado por seus pa-
res que se submeta a negar a
ciência.”
A escolha de um ministro da
Saúde que não siga as orienta-
ções da OMS e da comunidade
científica internacional pode
ser desastrosa para o País. “A
saída de Teich anuncia o pior”,
aponta Mario Scheffer. “Se o
próximo ministro se agarrar ao
fim da quarentena e ao uso gene-
ralizado de cloroquina, sabida-
mente ineficaz, teremos uma
tragédia sanitária. Serão milha-
res de mortes que seriam evitá-
veis, em proporções muito
maiores do que a pandemia já
impõe.”

Metrópole


Enfim, perdemos um mês
de combate adequado
à pandemia
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