O Estado de São Paulo (2020-05-16)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 16 DE MAIO DE 2020 Especial H3


Caderno 2


1 livro por semana*


UMA CAÇADA

H


á um momento muito deli-
cado, ali entre o fim da infân-
cia e o começo da adolescên-
cia, que pode definir quem seremos
e como vamos encarar a vida. Entra-
mos nesse túnel como crianças feli-
zes, na maioria das vezes, e então é
aquele turbilhão. Difícil para todo
mundo e cheio de crises, dúvidas e
inseguranças, esse momento é ain-
da mais desafiador para Nanda, a
narradora e protagonista de Contro-
le, o primeiro romance de Natalia
Borges Polesso, vencedora do Jabu-
ti por Amora, com contos sobre rela-
ções homoafetivas entre mulheres.
Na última vez que a encontramos
feliz, ela está orgulhosa, inaugurando
uma pista de bicicross que fez com o
amigo. Ao tentar repetir a volta perfei-
ta dele, levou um tombo feio, que en-
tortou a bicicleta, destruiu seu walk-
man e deixou marcas para sempre.
Foi depois disso que começaram

as convulsões e, com o diagnóstico de
epilepsia, Nanda colocou o fone no ou-
vido e se fechou, em si e no quarto.
Enquanto lidava com as crises, os re-
médios, os medos e a culpa, ela vivia os
dramas de qualquer pessoa da sua ida-
de. A dificuldade de comunicação. A
descoberta do amor – ou a constatação
de que sempre esteve ali – e da sexuali-

dade. Tudo entremeado pela música
do New Order, uma banda que, em
suas palavras, conseguiu se desenter-
rar do peso de uma morte (de Ian Cur-
tis, que também tinha epilepsia), e cu-
jos versos, que se encaixam em vários
momentos de sua vida, ela incluiu em
sua história. Uma história cheia de refe-
rências aos anos 1980 e 1990, um tem-

po em que o Mertiolate ardia e que o
walkman vinha do Paraguai.
Apesar de tudo, Nanda nunca quis
morrer, não queria a solidão, e eis que
duas décadas depois, num rompante,
decide tomar as rédeas da vida. E a vida
pulsa. Há desejo, coragem. Outra que-
da. O relógio mostrando a frase: Nun-
ca é tarde demais. Será?

MARIA FERNANDA RODRIGUES ESCREVE AOS SÁBADOS

l]


DE VIDA OU MORTE – E MUITO LUXO


Livro de Luke Jennings, que inspirou ‘Killing Eve’, mistura o brilho das grifes, grupos criminosos e humor letal


Leandro Nunes


A beleza do Teatro Massimo,
em Palermo, se mistura com
mais uma versão de Tosca. Não
a estreia de 1900, quando a Itá-
lia vivia uma turbulência políti-
ca capaz de tirar o sono da reale-
za. Naquele ano, a rainha e o pri-
meiro-ministro arriscaram as-
sistir à ópera de Puccini, sob
ameaça de um ataque terroris-
ta. A morte do rei Humberto I
viria seis meses depois, pelas
mãos de anarquistas.
É nesse ambiente recheado
de conspiração política, da ar-
quitetura à música, que o escri-
tor Luke Jennings abre a saga
mais que bem-sucedida de Co-
dinome Villanelle (Editora Su-
ma), obra que inspirou a série
Killing Eve. O romance policial
é a junção de quatro novelas
publicadas entre 2014 e 2016
sobre os primeiros passos da
assassina que dá nome ao livro,
com seu humor assustador, pai-


xão pela moda e uma presença
magnética.
Para quem já assistiu às duas
temporadas do seriado da BBC,
a cena do Teatro Massimo será
uma surpresa, embora o enredo
siga de modo semelhante ao li-
vro. Villanelle é uma jovem que
estava presa na Rússia e é con-
tratada – por quem, não se sabe


  • para executar alvos como
    grandes executivos de empre-
    sas, líderes de associações cri-
    minosas e políticos de renome.
    Seu treinamento teve um ri-
    gor de dar inveja. Percorreu can-
    tos escondidos da Europa para
    aprender com sujeitos estra-
    nhos como manipular armas de
    fogo, enviar e receber mensa-
    gens criptografadas, estraté-
    gias de aproximação, técnicas
    para abrir portas e, claro, como
    se vestir com deslumbre. Uma
    combinação perigosa, criada
    por Jennings para desconcertar
    e divertir o leitor, ele conta em
    entrevista por e-mail. “Estava
    interessado em ver como eu po-
    deria tornar uma personagem
    terrível, e ainda assim manter a


simpatia por ela.”
E é com elegância que Villa-
nelle adentra o templo da ópera
de Palermo para “neutralizar”
um importante chefe da máfia.
Com a mesma delicadeza que
segura uma bolsa Fendi, ela reti-
ra uma arma com silenciador e
faz seu trabalho. “Eu queria que
o leitor se perguntasse sobre
ela. Villanelle nasceu má ou foi
moldada por suas circunstân-
cias? Será capaz de sentir empa-
tia, sentir culpa, sentir a dor de
outra pessoa? Encontrará re-
denção?”, questiona o autor.
Antes de conceber Villanelle,
o escritor britânico desenvolveu
histórias protagonizadas por
mulheres. Da dançarina de Brea-
ch Candy à jovem atriz de Beauty
Stories. “Figuras femininas ofere-
cem um desafio mais interessan-
te”, ele diz. “Uma chance de
olhar o mundo através dos olhos
de alguém completamente sepa-
rado e diferente de mim.”
Aliás, Jennings não planejava
viver do ofício das letras como
principal carreira. Longe da
atenção de todos, ele já criava

histórias “e contos que nin-
guém lia”, mas seu lugar era no
palco. Jennings trabalhou co-
mo bailarino profissional por
dez anos. Uma experiência in-
terrompida, infelizmente, por
um acidente. “Sofri uma lesão
nas costas no palco do Covent
Garden, em uma performance
da ópera Fausto. Tive que come-
çar a pensar seriamente em
uma nova carreira e escrever pa-
recia ser a resposta.” O revés foi
contornado, e o britânico levou
seu conhecimento em balé
clássico para as páginas da Va-
nity Fair, The New Yorker e The
Observer na forma de críticas.
“Ser bailarino e escrever natu-
ralmente ajudou bastante.”
Por entender de ritmo, Jen-
nings constrói a narrativa de Co-
dinome Villanelle aos poucos. Co-
meça pelo serviço realizado em
Palermo, narrado de modo dife-
rente em Killing Eve, e se esten-
de nos detalhes sobre a forma-
ção da assassina, e a construção
de sua jornada como uma mu-
lher ágil, discreta, bem-vestida,
poliglota e inteligente. A sensa-

ção de faltar problemas para Vil-
lanelle logo aparece com o nome
de Eve Polastri, uma investigado-
ra da inteligência britânica que se
depara com uma série de assassi-
natos de figurões do poder.
É o início de uma caçada que
a série Killing Eve não deixou
de mostrar, com cenas descon-
certantes no bairro da Luz Ver-
melha, em Amsterdã, no frio
regado à vodca da Rússia, e no
16º arrondissement de Paris,
onde a assassina vive em um
apartamento discreto, tendo
na vizinhança a Fundação
Louis Vuitton, o Palais de
Tokyo e um rapaz apaixonado
que acredita no sorriso inocen-
te de Villanelle.
Na produção da BBC, protago-
nizada por Jodia Comer, no pa-
pel de Villanelle, e Sandra Oh,
como Eve, a série capitaneada
pela talentosa Phoebe Waller-
Bridge recebeu esforços de Jen-
nings na adaptação do roteiro.
“O desafio foi trazer a atmosfera
e o humor dos livros para a tela.
Phoebe tinha lido as histórias de
Villanelle quando a conheci, e
ela as entendeu perfeitamente”,
conta ele. Em cada capítulo, o
autor empurra as protagonistas
em uma espiral de escolhas, que
torna inesgotável a motivação
dessas mulheres. Tão próximo à
morte, o desejo tem lugar crian-
do laços, sem saídas dramáticas
ou psicológicas demais.
Grande desafio mesmo seria
executar o serviço nessa pande-
mia. “Villanelle ficaria fascina-
da com o vírus e sua capacidade
de se adaptar às circunstâncias.
Ela aprenderia com isso”, con-
ta Jennings.

DUAS MULHERES


PELAS CAPITAIS


EUROPEIAS


lO catálogo do Globoplay tem
algumas preciosidades. Killing
Eve chamou a atenção pelo su-
cesso de Sandra Oh em Grey’s
Anatomy, que lhe rendeu Globo
de Ouro. Mas é preciso dizer que
agora o roteiro de Phoebe Wal-
ler-Bridge e Luke Jennings colo-
ca a atriz em uma espiral distan-
te do drama e bem ajustada em
cenas de um humor sardônico.
Com duas temporadas já disponí-
veis na plataforma, a terceira es-
tá em curso na BBC America. Ro-
deada de assassinatos e investi-
gações, Killing Eve tem a presen-
ça deslumbrante de Villanelle,
papel de Jodie Comer, que com-
pleta a dupla de caçadora e pre-
sa. Nesse sentido, é impossível
dizer quem ocupa qual lugar,
mas é certo que será uma perse-
guição com cenas em capitais
europeias. A produção da BBC
America traz uma narrativa que
pouco sugere as motivações e
necessidades das personagens,
o que intensifica a sede das prota-
gonistas. Para elas, o querer não
conhece barreiras. E para quem
tem faro, se deparar com um se-
melhante pode ainda aumentar o
apetite. / L.N.

Luke Jennings. Elegância e
humor sardônico na escrita

MONICA ZARATTINI/ESTADÃO

GARETH GATRELL, BBC AMERICA

Nunca é tarde


BABEL

l Prosa e poesia
A Nova Aguilar, selo da Global, prepa-
ra o lançamento de ‘Manuel Bandeira


  • Poesia Completa e Prosa Seleta’,
    com organização de André Seffrin. A
    caixa, que está em gráfica, terá dois
    volumes, somando 2.600 páginas.


l Desigualdade e populismo
‘O Tempo das Paixões Tristes’, do so-
ciólogo francês François Dubet, sai no
2º semestre pela Vestígio. O autor mos-
tra que o sofrimento social não é mais
experimentado como provação que
exige lutas coletivas, mas como uma
série de injustiças pessoais, discrimina-
ções, experiências de desprezo e ques-
tionamento da autoestima – um ressen-
timento que alimenta o populismo.

l Devolução
A Saraiva recorreu da sentença e per-
deu de novo: vai ter mesmo que devol-
ver 50% dos livros de um grupo de 21
editoras que estavam em consignação.

STUART CLARKE

Obsessão. Sandra
Oh, como Eve, em
busca da suspeita

CODINOME
VILLANELLE
Aut.: Luke Jen-
nings
Trad.: Leonar-
do Alves
Editora: Su-
mas (239
págs., R$
29,90)
Ebook

Desordem. Uma queda, como o início e o fim de uma história de solidão

CONTROLE
Autora: Natalia
Borges Polesso
Editora:
Companhia
das Letras
(176 págs.;
R$ 44,90;
R$ 29,90
o e-book)
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