Sabor Club - Edição 41 (2020-06)

(Antfer) #1

28 | Sabor. club [ ed. 41 ]


AQUELE CAIPIRA DO VALE DO PARAÍBA
NÃO entendia a pressa de seus colegas de estágio
no Mugaritz, para sair correndo do templo da
gastronomia de vanguarda no País Basco, no
campo, para o agito da cidade. Ele aproveitava
as folgas para visitar vizinhos como o Luis, um
senhor que plantava maçãs e fazia sidra. Tudo era
cultivado, colhido e pescado perto da cozinha,
algo fascinante.
“A experiência no universo rural europeu foi
transformadora, sendo eu uma criatura do campo”,

afirma Rafa Cardoso, ou melhor, Rafa Bocaina, que
não tinha na época a noção de estar plantando
uma semente que brotaria em verdadeira revolução
baseada no resgate de tradições saborosas na serra
que lhe deu o novo sobrenome.
A charcutaria à qual dedica sua vida, disputada
por uma tropa de elite de restaurantes de São
Paulo, nasceu de uma raça de porco do interior
ameaçada de extinção, desprezada e difamada pela
grande indústria. Uma aventura iniciada após ter
trabalhado com Alex Atala e estrelados na Espanha,
conhecido a Amazônia com o saudoso Paulo
Martins (o papa da culinária de lá) e voltado à

capital com o telefone tocando e convites para virar
chef de cozinha. Rafa parou, pensou e decidiu: “Eu
vou é para a roça”.
A ideia da volta ao campo e à natureza de
Silveiras, no Vale Histórico, a 221 quilômetros de
São Paulo, era abrir uma pousada com pequeno
restaurante, mas um bendito imprevisto ocorreu
ao comprar uma porca do tipo casco de mula: ela
estava prenha e pariu 11 leitões.
“Eu já tinha meus ensaios de charcutaria e isso
estava na família. Minha mãe fazia linguiças para

vender na feira quando eu era criança. Mas quando
trabalhei com a carne do porco criado solto, livre
para fuçar e comer de forma natural, fiquei chocado
com a diferença de qualidade. Percebi ali que eu
não tinha como fugir da gastronomia.”
O sotaque do interior amacia as palavras de
Rafa, que desfila de forma coloquial, como num
cafezinho com bolo na varanda. O discurso revela
um conhecimento notável de história e de cultura
brasileiras, e também a paixão pelo campo.
Ao mergulhar em pesquisas, memórias e nas
vivências caipiras que o rodeiam entre as serras
da Bocaina e Mantiqueira, no Vale do Paraíba, ele

“Quando trabalhei com a carne do porco criado solto, livre para fuçar
e comer de forma natural, fiquei chocado com a diferença de qualidade”

O guardião do milho vermelho
Rafa tem sementes raras do tipo ancestral do cereal
Mandioca como símbolo máximo do ingrediente brasileiro? Não é bem assim, afirma o Rafa,
lembrando que no interior e estrela é o milho, que veio do México há 4 mil anos, entrando pelo
Acre e cultivado pelos índios guaranis antes de se espalhar. Na Bocaina, Rafa é uma espécie de
guardião do milho vermelho, variedade crioula que alimentava os carunchos em outros tempos.
O vegetal foi ressuscitado pelo produtor Patrick Assunção, da Fazenda Nova Coruputuba, em
Pindamonhangaba, que lhe confiou sementes. “Não é apenas uma história bonita resgatar esse
milho ancestral. Ele é muito mais saboroso e rico em amido, o angu é mais cremoso”.
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