O Estado de São Paulo (2020-05-18)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-10:20200518:
A10 SEGUNDA-FEIRA, 18 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Bruno Ribeiro


O lockdown – medida mais
rígida na escala do isolamento
social – será decretado no Esta-
do de São Paulo se o comitê es-
tadual de saúde julgar necessá-
rio para conter o número de ca-
sos de covid-19 e evitar o colap-
so do sistema de saúde. “Não
haverá nenhuma decisão de or-
dem política nem de inibir e
nem de aplicar, exceto aquela
determinada pela saúde”, afir-
mou o governador de São Pau-
lo, João Doria (PSDB), em en-
trevista exclusiva ao Estadão.
Doria também falou sobre
cloroquina, risco de saques e as-
saltos e a expectativa para 2021.
“Será um país entristecido e ma-
chucado”, diz. A seguir, os prin-
cipais trechos da entrevista:


lSe houver alguma decisão fede-
ral sobre uso da cloroquina que
seja diferente daquilo que os
médicos entendem como corre-
to, como o senhor agirá?
Em São Paulo vai prevalecer a
decisão médica, da ciência e da
saúde. Nenhuma decisão de or-
dem política, pessoal, persona-
lista, partidária ou ideológica
será colocada à frente da ciên-
cia. Se qualquer manifestação,
ainda que por decreto do go-
verno federal, ferir os princí-
pios da ciência e da proteção à
vida, aqui não será praticado.
Iremos à Justiça se necessário.


lO Estado havia comprado 3 mil
respiradores, mas o fornecedor
só entregará 1,2 mil. Há risco de
São Paulo não conseguir montar
tantas UTIs quanto precisa?
Esse fornecedor chinês nos ga-
rantiu parte de uma nova re-
messa, de 1.280 respiradores.
Posso antecipar que consegui-
mos mais mil respiradores,
que chegarão até 15 de junho.


São 2.380 respiradores, que
atendem a nossa necessidade
básica para ampliação de leitos
de UTI. Além disso, também ti-
vemos o compromisso... Agora
já não se sabe mais, mas tive-
mos o compromisso do Minis-
tério da Saúde de fornecer 200
respiradores. Nós temos de ter
mais respiradores, mais leitos
básicos, e ter equipe suficien-
te: paramédicos, enfermeiros,
fisioterapeutas e médicos. Na
próxima semana, abriremos
mais um hospital de campa-
nha, em Heliópolis. Se necessá-
rio, abriremos um quarto, na
região metropolitana. Temos
capacidade para isso.

lHá uma situação de conforto?
Neste momento, (a situação)
está sob controle. Nós não te-
mos neste momento – e é sem-
pre preciso enfatizar isso, nes-
te momento – risco de colap-
so. A demanda na região metro-
politana cresceu, mas ainda es-
tá controlável. A chegada de
novos respiradores nos ajuda-
rá a manter uma margem de se-
gurança razoável. No interior,
o índice também é seguro nes-
te momento. Mas é preciso ter
muito cuidado, porque a velo-
cidade com que essa doença se
expande é muito grande.

lDe que forma confusão no go-
verno federal atrapalha o enfren-
tamento à doença?
Tínhamos uma ótima relação
com o ministro Luiz Henrique
Mandetta. Ele foi republicano e
técnico. Na troca, ficamos no
aguardo de que o novo minis-
tro, Nelson Teich, pudesse se-
guir a mesma linha. E foi o que
aconteceu. Ele agiu como um
médico agiria. Os 200 respira-
dores estavam previstos em eta-
pas. O ministro teve o cuidado
de dizer que houve uma frustra-
ção no número de respiradores
comprados pelo governo fede-
ral, mas que designaria 25 respi-
radores, em lotes de 25, até al-
cançar os 200. Sendo que a ne-
cessidade é de 3 mil – é impor-
tante ressaltar que são 200 res-
piradores dos 3 mil que esta-

mos necessitando. Aqui vivem
46 milhões de brasileiros e é o
epicentro do coronavírus.

lComo o senhor vê a possível
chegada de um nome da área
militar para o posto?
Eu não tenho objeções a quem
venha da área militar, desde
que tenha conhecimento, pre-
paro e, no caso específico da
saúde, compromisso com a
saúde e a ciência.

lO governo federal aponta que,
dada a crise econômica, há risco
de saques, assaltos. As autorida-
des de segurança pública do Es-
tado também veem isso?
Isso é falso. É mais uma falsida-
de e uma má orientação do go-
verno federal. O maior risco é à
vida das pessoas. Não é saque
nem assalto. O vírus não esco-
lhe quem vai atingir – está em
todas as classes socioeconômi-
cas, em todas as idades, inde-
pendentemente do sexo. É la-
mentável que tenhamos no Bra-
sil informações dessa natureza
(de saques e assaltos).

lPor que São Paulo não conse-
gue aumentar o isolamento?
Porque temos uma dupla co-
municação para a opinião pú-
blica. Governadores e prefei-
tos, em sua maioria, fazem es-
forço pelo isolamento, mos-
tram a importância da medida
para proteção à saúde e à vida
e recomendam que as pessoas
fiquem em casa. Por outro la-
do, o governo federal, por
meio do presidente da Repúbli-
ca, orienta exatamente o inver-
so. (O presidente) não usa más-
caras quando deveria utilizar,
promove aglomerações, se pro-

nuncia contrariamente ao iso-
lamento, classifica o coronaví-
rus de uma gripezinha e resfria-
dozinho, e em vez de estar em
casa se diverte, passeando de
Jet Ski, fazendo exercício de ti-
ro, promovendo churrasco ou
tendo a intenção de fazê-lo.

lUm tema sempre na mesa é o
lockdown. O senhor disse que
ele poderá ser implementado, se
os protocolos recomendarem.
Quais protocolos são esses?
São diversos tipos de protoco-
los, local e regional. Quem vai
dizer se a necessidade motiva
aplicação ou não é o comitê de
saúde. Não haverá nenhuma de-
cisão de ordem política nem de
inibir e nem de aplicar, exceto
aquela determinada pela saúde.

lEles têm alguma ligação com a
lotação das UTIs?
O fundamental de todo o esfor-
ço do isolamento social está
exatamente em não sobrecarre-
gar as redes pública e privada.
Se não tivermos leitos para o
atendimento primário e leitos
para o atendimento em UTI, o
risco é aumentar não só infec-
ção e a gravidade da infecção,
como o número de óbitos. E é
tudo que nós não desejamos.

lComo seria o lockdown?
Seria o nível de isolamento
próximo do absoluto. Só se
deslocam quem está em áreas
de absoluta necessidade: segu-
rança pública, saúde, serviços
básicos, como luz, telefone,
água, transporte público, e
abastecimento, como farmá-
cias e supermercados. É um
isolamento mais duro e mais ri-
goroso. Mas, repito, embora es-

se protocolo exista, ele neste
momento não está colocado
para aplicação. Mas é sempre
importante ressaltar que, se
houver essa necessidade, e se
ela for determinada por um
crescimento rápido e inespera-
do do coronavírus, nós coloca-
remos em ação.

lQual está sendo a maior dificul-
dade no gerenciamento da crise?
Enfrentar os dois vírus: o coro-
navírus e o ‘Bolsonaro vírus’.
Não sei qual é pior.

lO presidente disse para “pega-
rem pesado” com o senhor. O
senhor já sente maior pressão?
Nenhuma. Nenhum empresá-
rio me telefonou em função
dessa reunião em que o presi-
dente pediu para jogarem pesa-
do. Não recebi nenhum telefo-
nema, nenhum WhatsApp, ne-
nhum e-mail, nenhuma visita.
Os empresários de São Paulo,
aqueles que são verdadeira-
mente empresários, participa-
ram dessa reunião em respeito
à condição do presidente ocu-
par o cargo que ocupa. Mas são
conscientes, pais de família, se-
res humanos, e têm inteligên-
cia suficiente para saber que
nenhuma pressão vai mudar a
nossa ideia de proteger vidas.

lE como o senhor lida com a
pressão vinda dos prefeitos?
Os prefeitos têm sido corretos
no diálogo com o Estado, na
sua maioria. São muito poucos
os que procuraram tomar deci-
sões equivocadas – que, aliás,
todas elas foram afetadas pelo
Ministério Público e também
pelo Tribunal de Justiça, que
têm agido, diga-se de passa-

gem, de forma muito correta
também. O diálogo foi fortaleci-
do pela criação do Conselho
Municipalista, com 16 prefeitos
que representam as 16 regiões
metropolitanas do Estado.

lSua gestão teve dois atritos
com a do prefeito Bruno Covas:
sobre fiscalização do uso de más-
caras e sobre o mega rodízio. Há
questões a serem ajustadas?
As relações seguem muito
boas, sobretudo entre o Bruno
Covas e eu. Às vezes, ajustes de
equipe, um momento tenso de
uma pandemia, fazem parte do
dia a dia de uma mega metrópo-
le e de um mega Estado. Mas o
diálogo entre os secretários de
Transportes segue fluido. O en-
tendimento depois daquele mo-
mento em que o secretário aca-
bou sendo surpreendido com
uma medida que não havia sido
dialogada previamente com ele
(o rodízio) foi sanado.

lSe pensarmos que vamos so-
breviver à pandemia, como o se-
nhor vê o País em 2021?
Vejo o País muito entristecido
e machucado. Primeiro pelas
mortes e pelas pessoas que fo-
ram vítimas do coronavírus.
Mesmo entre as que sobrevive-
rem, muitas terão problemas
congênitos oriundos de comor-
bidades agravadas pelo corona-
vírus. E a tristeza. Todas as pes-
soas que perdem entes queri-
dos ficam um longo tempo
com essa tristeza no coração,
na lembrança, na alma. O Brasil
será um País mais triste em


  1. E triste pela falta de lide-
    rança, por ter um presidente
    que não lidera adequadamente,
    que não tem compaixão.


Vinícius Valfré / BRASÍLIA


Em dois meses, o total de mor-
tes registradas por coronavírus
no Brasil saiu de zero para
16.118, sendo que 485 foram rela-
tadas nas últimas 24 horas, se-
gundo dados divulgados ontem
pelo Ministério da Saúde.
A notificação do primeiro óbi-
to no País aconteceu em 17 de


março. De lá para cá, o Brasil se
acostumou a contar corpos às
centenas e a ver sistemas de saú-
de caminharem para o colapso.
O crescimento exponencial de
novos casos de covid-19 é uma
das mais preocupantes caracte-
rísticas da doença, que em todo
o mundo já matou ao menos 314
mil pessoas. O Brasil é o quarto
País do mundo em número de
casos e o sexto em total de mor-
tes. São 241.080 pessoas conta-
minadas, incluindo os 7.938 no-
vos casos reportados ontem.
Para Airton Stein, professor
titular de saúde coletiva da Uni-
versidade Federal de Ciências
da Saúde de Porto Alegre, uma

marca dos dois meses foi a falta
de mensagens claras por parte
de autoridades brasileiras so-
bre como a população deveria
encarar a pandemia. Ele avalia
que parte da população não en-
tendeu a gravidade da doença.
“O Brasil não está conseguin-
do ter taxa de infecciosidade me-
nor, como está acontecendo na
Espanha e no Reino Unido. No
Brasil, a taxa de infecção conti-
nua alta. São várias as razões. A
primeira é que nunca houve um
problema que impactasse todo
o País. Chama a atenção o fato
de a população estar perdendo
o medo de ir às ruas. Ter mensa-
gem clara e bem definida das li-

deranças é fundamental.”
Ainda antes de conhecida a
primeira morte, o comporta-
mento do presidente Jair Bolso-
naro era criticado por especia-
listas em saúde. No dia 15 de
março, quando registros de pes-
soas infectadas já se acumula-

vam, o mandatário teve contato
com pessoas que foram a uma
manifestação em apoio a ele,
em Brasília. Pouco antes, Bolso-
naro esteve com o chefe da Se-
cretaria de Comunicação, Fá-
bio Wajngarten, que havia con-
traído o vírus.

“Não estou por dentro dos exa-
mes dele, mas se ele é um conta-
to próximo de um caso confirma-
do, acho que, em primeiro lugar,
como autoridade do País, seria
importante ele dar esse exem-
plo de se resguardar”, disse ao
Estadão, à época, Nancy Bellei,
professora de infectologia da
Unifesp e consultora da Socieda-
de Brasileira de Infectologia.
Para Kleber Giovanni Luiz,
chefe do departamento de In-
fectologia da UFRN, outra lição
que o País deveria ter aprendi-
do nos 60 dias seria ampliar cui-
dados com a atenção básica. “O
que temos que fazer como saú-
de pública é capacitar equipes,
de médicos e enfermeiros, e
também criar condições de tra-
balho, com leitos de UTI. Capa-
citar a atenção básica é funda-
mental. Não vi esse movimen-
to. Vimos muito o movimento
de terapia intensiva”, pontuou.

ENTREVISTA


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Diferença entre os


discursos dos governos


federal, estaduais e


municipais dificulta


isolamento, afirma Doria


João Doria, governador de São Paulo


Dois meses após primeira morte,


Brasil registra 16.118 óbitos


Covas recua em rodízio e quer feriados. Pág. 11}


DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

Alerta. Falar em risco de saques e assaltos é uma falsidade e má orientação do governo federal, diz o governador paulista

‘Teremos


lockdown


se houver


necessidade’


Metrópole

Rio. Cemitério do Caju tem área para vítimas do coronavírus

Dede 17 de março, País
se acostumou a contar


corpos às centenas e a


ver sistemas de saúde


seguirem para o colapso


DADO GALDIERI/THE NEW YORK TIMES
Free download pdf