O Estado de São Paulo (2020-05-18)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 18 DE MAIO DE 2020 Metrópole A


DANIEL MARTINS


DE BARROS


N


osso cérebro é cheio de fa-
lhas. Sempre falo delas por
aqui. Enxergamos o que
queremos, lembramos do que nos
interessa, encontramos relação
onde existe acaso. Criamos assim
uma imagem bastante imperfeita
da realidade. O bom é que mesmo
com essas imperfeições o cérebro
foi bom o suficiente para ao me-
nos perceber-se defeituoso.
Mais surpreendente ainda foi
termos encontrado meios para
contornar esses problemas. Um
cérebro sozinho não teria condi-
ções de fazê-lo, mas, com a união
de várias mentes, o ser humano
empreendeu uma de suas maio-
res revoluções: a revolução cien-
tífica. Criamos e desenvolvemos
métodos para evitar os tropeços

de nossos raciocínios.
Se antes acreditávamos nas ideias
que a observação do mundo nos tra-
zia, passamos a chamá-las de hipóte-
ses, que deveriam ser testadas antes
de serem aceitas. E logo percebe-
mos que não bastava fazer experiên-
cias para confirmá-las, era preciso
que elas pudessem ser derrubadas.
Uma hipótese impossível de ser ne-
gada não é muito diferente de um
dogma, afinal. E o pior: com isso, as
verdades passaram a ser considera-
das transitórias. A qualquer momen-
to um novo experimento podia mo-
dificar nossas crenças.
Assim a ciência passou a ser enca-
rada com um misto de fascínio e me-
do. Os resultados eram realmente
fascinantes: podíamos ver planetas,
enxergar nossos ossos, curar doen-

ças antes fatais – o conhecimento
não apenas nos ajudava a compreen-
der melhor o mundo, mas também
a fazer intervenções mais eficazes
nele. Mas tais resultados nunca fo-
ram vistos sem alguma desconfian-
ça. Por ser contraintuitiva, contra-
riar nossas percepções, derrubar
pressupostos, o público em geral
sempre manteve reservas com rela-
ção à ciência. Essa ambiguidade é o
segredo do sucesso perene da histó-
ria do doutor Frankenstein, por
exemplo. Ciência significa possibili-

dades e perigos, progresso e poder.
Não é coincidência ouvirmos mui-
tos políticos invocarem a ciência
em seus pronunciamentos. Querem
fazer crer que ela dará as repostas.
Ela ditará as condutas. Iluminará
nossos passos. Mas não é bem as-
sim. Não que eu esteja reclamando
de a ciência ser valorizada, mas não
é assim que funciona.
Primeiro porque ciência não é um

oráculo com respostas místicas a
nos oferecer em momentos de dúvi-
da. A ciência é um método para bus-
car conhecimento, que pode ou não
ter aplicação prática. E também por-
que ela não é capaz de oferecer solu-
ção para todos os tipos de situação.
Como apontado pelo cientista Gar-
ret Hardin no final dos anos 1960,
existem problemas sem soluções
técnicas, para os quais não adianta
esperar que ciência e tecnologia en-
contrem respostas.
Um exemplo paradigmático são as
situações nas quais precisamos pagar
individualmente um preço para bene-
ficiar a coletividade. Hardin as chama
de tragédias, no sentido original de
inevitáveis. Exatamente como na pan-
demia. Para boa parte da população, o
preço de ficar isolado é bastante alto,
psicológica e economicamente. Ao
mesmo tempo, o impacto epidemioló-
gico de uma única pessoa sair de casa
é irrisório. Se só ela furar a quarente-
na, raciocina, ninguém será prejudica-
do. A tragédia é que todo mundo pen-
sa da mesma forma, nos levando ao
resultado que já conhecemos. (Aten-
ção: quem se orgulha de manter a qua-
rentena não deve se arrogar superiori-

dade moral. Não nos iludamos, es-
tamos todos fazendo contas).
Não há tecnologia para resolver
essa situação. Não adianta espe-
rar de médicos, virologistas ou
matemáticos a saída. Para Har-
din, é preciso alguma coerção –
multas, por exemplo. É uma boa
maneira de inverter os incenti-
vos, tornando a saída mais cara
do que a permanência em casa.
Apelos à consciência não funcio-
nam; medo, culpa, nenhuma estra-
tégia emocional dá certo no ataca-
do. Nem mesmo medidas como o
rodízio de veículos podem funcio-
nar. Ele aumenta um pouco o cus-
to de sair, mas não reduz o preço
pago por ficar em casa.
É preciso minimizarmos esse
custo (por exemplo, dando segu-
rança econômica para as pes-
soas) e também reduzir os ga-
nhos da saída (minimizando as
opções de destino). Sem isso, o
cálculo racional continuará levan-
do muitas pessoas para fora de
casa. Tragicamente.

]
É PSIQUIATRA

facebook/danielbarrospsiquiatra
ESCREVE QUINZENALMENTE

Com isolamento social longe do esperado, prefeito quer manter população em casa antecipando Corpus Christi e Dia da Consciência Negra


Fim trágico


Ciência não é um oráculo
com respostas místicas
em momentos de dúvida

João Ker
Giovana Girardi


Sem conseguir aumentar o
isolamento social na cidade,
o prefeito de São Paulo, Bru-
no Covas (PSDB), decidiu on-
tem retomar o esquema tradi-
cional de rodízio de carro,
que volta ao normal hoje,
mas anunciou que quer ante-
cipar os feriados de Corpus
Christi (11 de junho) e da
Consciência Negra (20 de no-
vembro) “para já” a fim de
“parar” a cidade. Ele apelou à
população que fique em casa
para conter o coronavírus.
A decisão foi tomada porque
a ampliação do rodízio para
50% da frota, adotada ao longo
da semana que passou, não teve
o impacto esperado. Segundo
Covas, foi possível tirar das
ruas, em média, 1,27 milhão de
veículos por dia e houve dimi-
nuição de 5,5% nos passageiros
de ônibus, mas ainda assim as
pessoas continuaram saindo e a
taxa de isolamento não subiu.
Comparando a última sexta,
15, com a anterior, o ganho com
o rodízio mais amplo foi de ape-
nas dois pontos porcentuais, de
48% ante 46%. Mas, quanto
comparada a média semanal, ve-
rifica-se que “ficamos na mes-
ma linha insuficiente”, disse.
Na última semana, não houve
um único dia útil em que o índi-
ce de isolamento na capital te-
nha atingido o mínimo de 50%.
Apenas fins de semana e feria-
dos alcançaram o número em
maio – sábado foi de 52%. A últi-
ma vez que a cidade teve mais
de 50% de isolamento durante a
semana foi em 15 de abril.
Covas afirmou, porém, que
voltar o rodízio ao modelo tradi-
cional “não pode ser desculpa
para as pessoas se sentirem à
vontade para retomar a circula-


ção pela cidade”. “Precisamos
ampliar o isolamento, precisa-
mos rápido e estamos ficando
sem alternativa”, disse.
Parece um “contrassenso”,
comentou Covas, “o prefeito da
cidade mais dinâmica do País,
símbolo do trabalho e do em-
preendedorismo, pedir para a ci-
dade parar, pisar no freio e se
esforçar ainda mais para aper-
tar o cinto”. Mas ele fez exata-
mente esse pedido. “Eu não vou
me omitir. Essa é a minha esco-
lha, o meu dever. É difícil acredi-
tar que alguns prefiram que a
população seja submetida a
uma roleta russa. A indiferença
diante da morte é indecorosa, é
crime de responsabilidade, é
contra a nossa Constituição fe-
deral. Não há outro caminho
neste momento em que esta-
mos. Antes de pensarmos em
abrir, precisamos parar.”
Covas deu indicativos de que
gostaria de implementar o lock-

down na cidade, mas afirmou
que não tem os instrumentos
para fechar totalmente a cidade
nem tem como fazer isso sozi-
nho, sem o apoio do Estado e
das cidades vizinhas.
“Nossa competência consti-
tucional em segurança é muito
limitada. Não há no mundo ca-
so de autoridade pública sem
poder de polícia, sem seguran-
ça pública, que consiga implan-
tar um lockdown. Além disso, a
capital não é uma ilha como a
Nova Zelândia, não somos isola-
dos do mundo. Nossa região me-
tropolitana é interdependente.
Nossas ruas se misturam. São
1.746 ruas que começam numa
cidade e terminam em outra.
Não há divisas. Temos de orga-
nizar isso juntos”, afirmou.
“Não somos somente 12,3 mi-
lhões de paulistanos ou paulis-
tanas. Somos mais de 21 mi-
lhões de habitantes na maior re-
gião metropolitana do País. A

cidade de São Paulo não contro-
la o metrô nem os trens. São
Paulo precisa desacelerar ainda
mais por uns dias para diminuir
novamente o ritmo de contágio
e salvar vidas”, complementou.

Criatividade. Sem essa possibi-
lidade, ele disse que seria “criati-
vo” e usaria os instrumentos
que tem ao seu alcance, sugerin-
do antecipar os feriados munici-
pais. Acompanhado na coletiva
pelo presidente da Câmara Mu-
nicipal, o vereador Eduardo Tu-
ma (PSDB), Covas disse que en-
tregou um projeto de lei para

ser votado em regime de urgên-
cia “para antecipar para já os
dois últimos feriados munici-
pais deste ano”.
“Os feriados de Corpus Chris-
ti e da Consciência Negra se-
riam excepcionalmente, e so-
mente este ano, pontos faculta-
tivos. Vamos manter a celebra-
ção, mas sem o feriado obrigató-
rio”, afirmou. Tuma disse que
convocou para hoje uma sessão
da Câmara para apreciar o PL.
O prefeito disse ainda que vai
pedir ao governador João Doria
(PSDB) para fazer o mesmo
com o feriado de 9 de Julho. “Te-
remos assim uma pausa força-
da para diminuir a circulação de
pessoas e ampliar o isolamento
social. A cidade está chegando
ao seu limite de opções.”
Covas pediu a colaboração da
população neste período. “É
uma linha divisória entre a civili-
zação e a barbárie. A conta a fa-
zer é de quantos mortos vamos

enterrar e em quanto tempo.
Precisamos decidir se quere-
mos testar nossos limites ou se
seremos prudentes e nos man-
teremos firmes em isolamento
social pelo tempo necessário pa-
ra que nosso sistema de saúde
não entre em colapso. Infeliz-
mente, estamos mais próximos
disso do que gostaríamos.”
Os hospitais da capital já atin-
giram 89% de ocupação em lei-
tos de UTI. O secretário munici-
pal de Saúde, Edson Aparecido,
afirmou que a cidade teve, en-
tre 9 de abril e 15 de maio, um
aumento de 432% nos óbitos
por covid-19. “Possivelmente
em 15 dias o sistema de saúde da
cidade de São Paulo estará pro-
fundamente comprometido,
mesmo com todo o esforço na
ampliação de leitos”, disse.
Ontem, as mortes pela doen-
ça no Estado de São Paulo che-
garam a 4.782, mais do que o ob-
servado em todo o México.

Gilberto Amendola


Interlocutores próximos ao pre-
feito Bruno Covas e ao governa-
dor João Doria enxergaram nas
falas de Covas de ontem uma
forma de pressionar o governa-
dor para que ele adote o lock-
down. A medida está sendo ana-
lisada pelo comitê de saúde cria-
do pelo governo do Estado para
o combate do coronavírus.
Para o cientista político Hum-
berto Dantas, doutor pela USP,
pesquisador da FGV e head de


educação do Centro de Lideran-
ça Pública (CLP), é possível ha-
ver um cálculo político nesse
“não lockdown” da cidade. “Do

ponto de vista político e econô-
mico deve haver uma pressão
muito grande para não fazer o
lockdown em São Paulo. Não

podemos esquecer que este é
um ano eleitoral. Isso pode fa-
zer parte de uma estratégia par-
tidária. Ao declarar o lockdown,
Covas pode ter prejuízos eleito-
rais no curto prazo. Já o gover-
nador não tem nenhuma elei-
ção no seu horizonte”, diz.
Para além dos aspectos políti-
cos, o tema divide especialistas.
“O prefeito está certo ao dizer
nenhuma cidade é uma ilha,
mas acredito que São Paulo se-
ria uma cidade mais influencia-
dora do que influenciada. O
lockdown em São Paulo traria
mais efeitos positivos para toda
a região do que problemas para
a cidade”, afirma Carlos Magno
Castelo Branco, infectologista
e epidemiologista da Unesp e
membro do Comitê de Contin-
genciamento do Estado.

Já para o médico sanitarista e
professor de administração hos-
pitalar e sistemas de saúde da
FGV Walter Cintra Ferreira, o
prefeito está correto no que diz
respeito à necessidade de envol-
ver outras cidades no lockdown.
“Ele tem razão quando diz que
não tem como falar em lock-
down sem a participação de ou-
tras cidades, principalmente da

região metropolitana. Em São
Paulo, passamos de uma cidade
para outra sem perceber. Essa
não pode ser uma decisão solitá-
ria do prefeito, tem de ser discuti-
do em nível regional entre as se-
cretarias de saúde. Mas, quando
olhamos para a nossa taxa de
ocupação de leitos, fica claro que
é preciso pensar no lockdown.”

‘Inevitável’. O professor de epi-
demiologia da Faculdade de Saú-
de Publica da USP Eliseu Alves
Waldman considera que o lock-
down será inevitável. “Basta
acompanhar a situação da ocu-
pação dos leitos em hospitais. O
problema é que estamos viven-
do essa pandemia com um ruído
muito forte. Acho que a demora
de assumir um lockdown está li-
gada a esse ruído. Se a sociedade
está com problema para obede-
cer algo mais suave como a qua-
rentena, como teremos sucesso
em um lockddown?”

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lEscolha

lIndiferença

SP não terá como evitar lockdown, dizem especialistas


Drive-in da fé tem missa sem sair do carro. Pág. 12 }

Taxa de isolamento por dia

● Máximo foi de 59%, abaixo do recomendável; índice ficou
baixo mesmo com rodízio ampliado

ISOLAMENTO NA CAPITAL

FONTE: SISTEMA DE MONITORAMENTO INTELIGENTE DO GOVERNO DE SÃO PAULO INFOGRÁFICO/ESTADÃO

EM PORCENTAGEM

6/MAR 15/MAI

60

50

40

30

20
5/ABR

48%

27

59

“A indiferença diante
da morte é crime de
responsabilidade, é contra a
nossa Constituição federal.”
Bruno Covas
PREFEITO DE SP

Sem sucesso. Apesar do rodízio ampliado, taxa de isolamento na capital não chegou a 50%

Covas recua em rodízio e quer feriados


ALEX SILVA/ESTADAO

ALEX SILVA/ESTADAO

De bike com máscara. Isolamento social se mantém baixo

Necessidade de que


cidades vizinhas também


adotem medida para que


ela seja eficaz divide
professores


“Se a sociedade está
com problema para
obedecer algo mais suave
como a quarentena, como
teremos sucesso em um
lockddown?”
Eliseu Alves Waldman
PROFESSOR DE EPIDEMIOLOGIA DA USP
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