O Estado de São Paulo (2020-05-18)

(Antfer) #1

Luiz Carlos Merten


São cinco anos sem filmar. Nun-
ca, em momento algum de sua
carreira, nem nos duros anos da
ditadura militar, Cacá Diegues
ficou tanto tempo sem dirigir.
Mas não está parado. Em pleno
período de quarentena, ele pre-
para o retorno. Já tem o roteiro,
os parceiros, tudo pronto para
filmar – “quando isso passar”.
Na terça, 19, ele completa 80
anos. Grandes autores do Cine-
ma Novo morreram cedo. Glau-
ber Rocha, aos 42 anos. Leon
Hirszman e Joaquim Pedro de
Andrade, na faixa dos 50. Mas
Nelson Pereira dos Santos che-
gou aos 89 anos, Ruy Guerra es-
tá com 88.


A data fornece a oportunida-
de para uma boa conversa. Car-
reira, novos planos. Nesses cin-
co anos, Cacá, em momento al-
gum, esteve parado. E não filmar
foi um pouco uma contingência,
senão uma opção. A pós-produ-
ção do último longa – o último
não, o mais recente –, O Grande
Circo Místico, foi bem mais com-
plicada que esperava. E houve a
doença da filha. Cacá parou tu-
do para assistir Flora, que mor-
reu no ano passado, aos 32 anos,
depois de três lutando pela vida.
Ele sente falta de filmar. Em-
bora tenha assistido recente-
mente – “Só o streaming permi-
te que a gente veja esses filmes”


  • Intriga Internacional, e tenha
    gostado, ele não acredita, como
    Alfred Hitchcock, que filmar se-
    ja passar o roteiro pela câmera.
    Cacá adora a interação, a agita-
    ção dos sets. Se há uma explica-


ção para a longevidade de sua
trajetória de mais de 60 anos, 20
longas, é a dedicação. “Trabalho
pra caramba.”
Carlos José Fontes Diegues
nasceu em 19 de maio de 1940
em Maceió, nas Alagoas. Veio
moço para o Rio. Frequentou o
cineclube, a Cinemateca do
MAM. Ficou amigo de David Ne-
ves e essa amizade foi decisiva.
Realizaram juntos seu primeiro
curta. Conheceu um frangui-
nho baiano, Glauber Rocha, fa-
lastrão e autoconfiante. Gesta-
ram o movimento que ficou co-
nhecido como Cinema Novo. A
agenda, ele conta, não era nem
um pouco modesta. “Quería-
mos simplesmente mudar o ci-
nema, o Brasil e o mundo. Pode
ser que não tenhamos atingido
nossos objetivos, mas o Cinema
Novo, com certeza, ajudou a mu-
dar as maneira de pensar o Bra-

sil.” Além dessa vontade de mu-
dar tudo, o Cinema Novo queria
colocar na tela a cara desse des-
conhecido, o povo brasileiro.
“Esse compromisso não ha-
via na Atlântida, nem na produ-
ção paulista da Vera Cruz.” Em
1962, participou de um longa em
episódios, Cinco Vezes Favela –
dirigiu o segmento Escola de
Samba Alegrias de Viver –, produ-
zido pelo CPC, Centro Popular
de Cultura, da UNE, União Na-
cional dos Estudantes. Em 1964,
levou Ganga Zumba a Cannes,
no ano da afirmação do Cinema
Novo, com os clássicos de Glau-
ber, Deus e o Diabo na Terra do
Sol, e Nelson Pereira dos San-
tos, Vidas Secas. “A sessão de
Deus e o Diabo foi um espanto.
Ninguém nunca tinha visto aqui-
lo”, lembra. Na sequência, diri-
giu os longas A Grande Cidade,
Os Herdeiros e Quando o Carna-

val Chegar.
Esses filmes tiveram repercus-
são, até internacional, mas Cacá
concorda com o repórter. A ma-
turidade autoral veio em 1973,
com Joana Francesa. “Você tem
razão. Foi o filme em que organi-
zei e sistematizei tudo o que que-
ria dizer, e a forma. O filme tem
espinha.” A nova fase prosse-
guiu com Xica da Silva, Chuvas
de Verão, Bye-Bye Brasil, Quilom-
bo, Um Trem para as Estrelas (o
primeiro Orfeu). Debruçando-
se sobre os próprios filmes, no
retrospecto, Cacá diz que nunca
extrapolou. Fez filmes do tama-
nho do cinema brasileiro. No co-
meço dos anos 1990, após o fe-
chamento da Embrafilme, quan-
do a produção estava parada,
reinventou-se numa parceria
com a televisão.
Fez Veja Esta Canção. Pouco
antes, e já debaixo de dificulda-

de, havia feito Dias Melhores Vi-
rão. Eles vieram. Cacá seguiu fil-
mando. Tieta do Agreste, Orfeu,
Deus É Brasileiro, O Maior Amor
do Mundo. O caso de O Grande
Circo Místico é especial. Com a
cumplicidade de George Moura
no roteiro, Cacá criou uma histó-
ria a partir do poema de Jorge de
Lima. Literatura e música sem-
pre nutriram seu cinema. As
adaptações e a qualidade dos ro-
teiros o levaram à Academia Bra-
sileira de Letras, na vaga de Nel-
son Pereira. “Tentei ser músico,
estudando piano e violão, mas
não tenho mãos boas. Mas sem-
pre tive ouvido, e soube falar
com os músicos a linguagem de-
les, para pedir as trilhas que que-
ria nos filmes.”
O Grande Circo Místico era
uma parceria com a Europa. Ti-
nha efeitos que não saíram co-
mo Cacá queria e foram refei-
tos. No processo, sua filha Flora
ficou doente. Lutou bravamen-
te, mas não resistiu. Morreu no
ano passado, aos 32 anos. Cacá
parou tudo para ficar ao lado de-
la. Não tinha cabeça para mais
nada. Para complicar o que já es-
tava difícil, houve a crise do eu-
ro. A moeda disparou. O custo
em euros, mesmo abaixo do pre-
visto, estourou a previsão em
reais. Cacá até agora não conse-
guiu resolver o imbróglio.
Na eleição presidencial, seu
candidato não era o que venceu,
mas ele ganhou no voto popu-
lar. Havia que respeitar. “Agora,
virou esse horror.” Cacá fala da
pandemia e do governo. No ano
passado, submeteu à Ancine
dois projetos: Deus Ainda É Brasi-
leiro e O Último Imperador do Bra-
sil, sobre Dom Pedro II, roteiro
que herdou de Nelson Pereira.
Ambos foram rejeitados. Deus
Ainda É Brasileiro tenta dar con-
ta de tudo o que ocorreu no País
desde a estreia do primeiro, há
17 anos. Foi escrito por seu cole-
ga da ABL, Geraldo Carneiro,
mas foi defenestrado como sem
qualidade.
Cacá queixa-se da gestão de
Christian de Castro na Ancine,
que foi danosa para o cinema
brasileiro em geral e, para ele,
nem se fala. Chegou a pensar
que era perseguição, para forçá-
lo a deixar de filmar, mas tinha
outra prioridade, a filha. Nada
disso, porém, conseguiu pros-
trá-lo. Cacá vai voltar. Deus, afi-
nal, ainda é brasileiro.

NA


QUARENTENA


Alexandre Rossi


Como a mudança de rotina afeta os pets? PÁG. H5


GALERIA


OS 80 ANOS


DE CACÁ


DIEGO VEIGA

Um dos cineastas mais


importantes do Brasil


festeja com projetos


‘Xica da Silva’. Reflexão sobre a escravidão ‘Joana Francesa’. Ponto alto da carreira

Caderno2


EMBRAFILME/TERRA FILMES

‘Bye Bye Brasil’. Uma caravana sem destino


Direção. Com projetos não realizados, Cacá Diegues pretende filmar a vida do imperador D. Pedro II, roteiro que herdou de Nelson Pereira dos Santos


MARCOS ARCOVERDE/ESTADÃO

ALTER FILMES/EMBRAFILME/TERRA FILMES

‘Chuvas de Verão’. Sensível ao falar do idoso

LUIZ CARLOS BARRETO PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS ZOOM CINEMATOGRÁFICA

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