O Estado de São Paulo (2020-05-18)

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A8 SEGUNDA-FEIRA, 18 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional

WASHINGTON


A preocupação com a China é ca-
racterística dos dois maiores par-
tidos dos EUA – e não deve mu-
dar após a eleição presidencial,
seja quem for o vencedor. Recen-
te pesquisa do Pew Research
Center, que mostra a crescente
visão negativa dos americanos
com relação aos chineses, indica
que a maioria dos republicanos e
dos democratas dizem ter uma
opinião desfavorável à China.
Na linha cruzada entre China
e EUA, especialistas apontam
que o cenário é de instabilidade
generalizada. “O resultado será
um desvio lento, mas constan-
te, em direção à anarquia inter-
nacional, passando por tudo,


da segurança internacional ao
comércio e até pelo gerencia-
mento da pandemia”, escreveu
o ex-primeiro-ministro austra-
liano, Kevin Rudd, na Foreign Af-
fairs deste mês. “China e EUA
podem estar em desacordo

com muitos de seus valores,
ideologia e prioridades, mas
uma interação construtiva em
torno de questões de interesse
comum é vital para uma ordem
mundial estável”, afirma Carla
Freeman, diretora do Sais Fo-

reign Policy Institute, da uni-
versidade Johns Hopkins.
O ex-embaixador do Brasil
em Washington e presidente
emérito do Conselho Empresa-
rial Brasil-China, Sérgio Ama-
ral, diz que os chineses saem

fortalecidos da crise, mas ava-
lia que nenhum dos dois países
terá papel central no cenário in-
ternacional sem antes solucio-
nar o conflito existente. “É um
conflito maior do que comér-
cio. É um conflito para saber se

os EUA aceitam ou não a China
como um igual. Os dois países
divididos não têm condições de
trabalhar juntos para uma nova
ordem internacional”, disse
Amaral.
“Se não conseguirmos ver
com mais clareza quais serão as
lideranças que exercerão um pa-
pel maior, o mais provável é
que o atrito continue, sobretu-
do se Trump for reeleito”, afir-
ma o ex-embaixador. “Isto é
ruim, sobretudo diante do fato
de que, possivelmente, a China
está construindo sua ordem in-
ternacional, recriando instân-
cias paralelas às que já existem
hoje.”
Mark Malloch Brown, ex-nú-
mero 2 da ONU, avalia que po-
tências de médio porte pode-
riam preencher o espaço – Euro-
pa, Brasil, Índia ou Japão –, mas
não vê ninguém apto e todos
mais preocupados com a agen-
da doméstica. “Isso pode obri-
gar a ONU a deixar de ser ape-
nas uma organização intergover-
namental e se tornar uma orga-
nização onde cada vez mais o se-
tor privado e a sociedade civil se
sentariam à mesa”, disse. / B.B.

Vírus intensifica rivalidade e reproduz


entre China e EUA clima de Guerra Fria


Visão negativa sobre chineses cresce entre americanos


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Beatriz Bulla
CORRESPONDENTE / WASHINGTON


EUA e China vivem uma nova
Guerra Fria? A pergunta foi le-
vantada pelo historiador Odd
Arne Westad em artigo na re-
vista Foreign Affairs, no ano
passado, e o termo voltou a
ser usado por analistas nas úl-
timas semanas. A pandemia
colocou os dois países, que vi-
nham ensaiando uma trégua
diplomática, após um acordo
comercial no fim de 2019, de
novo em rota de colisão.
A pandemia escancarou o vá-
cuo deixado pelos americanos,
que não lideram uma resposta
mundial à crise e preferiram
apontar o dedo para os erros da
Organização Mundial de Saú-
de. Do outro lado, a China bus-
ca espaço no tabuleiro interna-
cional, enquanto enfrenta críti-
cas com relação ao grau de trans-
parência e à velocidade de res-
posta no início do surto.
Um relatório interno do Mi-
nistério da Segurança da China,
publicado pela agência Reuters,
no dia 4, afirma que a crescente
hostilidade contra os chineses,
provocada em parte pela retóri-
ca americana, havia chegado ao
pior nível desde o massacre da
Praça Tiananmen, em 1989. O
texto concluiu que os EUA
viam Pequim como uma amea-
ça econômica e de segurança.
Pessoas que leram o relatório
disseram que ele foi encarado
pela comunidade de inteligên-
cia da China como uma nova
versão do telegrama do embai-
xador soviético Nikolai No-
vikov, de 1946, que enfatizava o
perigo da ambição militar dos
EUA, e até hoje é considerado
um dos marcos da Guerra Fria.
“Eu sei que as pessoas se sen-
tem desconfortáveis com o ter-
mo, mas acho que temos de ser
honestos e chamar isso pelo
que é. Este é o começo de uma
nova Guerra Fria”, afirmou esta
semana Clete Willems, ex-as-
sessor da Casa Branca, em en-
trevista à emissora CNBC. “Se
não formos cuidadosos, a coisa
pode piorar.”
“Estamos no início de uma
Guerra Fria”, disse Orville
Schell, diretor do Centro de Re-
lações EUA-China da Asia So-
ciety, em entrevista ao site Busi-


ness Insider. “Estamos cami-
nhando cada vez mais para a po-
sição de adversários da China.”
O presidente americano, Do-
nald Trump, tem usado a pande-
mia para reforçar as bases prote-
cionistas de sua política comer-
cial e argumentar que os EUA
não podem depender de longas

cadeias globais de produção,
em um recado direto à China,
que respondeu, em 2018, por
mais de 40% da produção de in-
sumos e equipamentos médi-
cos do mundo.
Ao mesmo tempo, segundo
analistas, a busca por espaço
geopolítico entre EUA e China
se diferencia em pelo menos
dois aspectos da Guerra Fria en-
tre americanos e soviéticos, du-
rante a maior parte do século 20.
Primeiro, ao contrário da
União Soviética, os chineses
não têm como objetivo espa-
lhar o comunismo pelo mundo.
O conflito com Washington é
econômico, não ideológico. Por
fim, a diferença mais marcante
é a rede de relações comerciais
e de investimentos que embara-
lham a relação entre China e
EUA – o que não havia entre
americanos e soviéticos.

Um dos sinais de que a pande-
mia se tornaria uma disputa po-
lítica foi a tentativa de Trump
de colocar no coronavírus a alcu-
nha de “vírus chinês”, enquanto
Pequim adotava uma “diploma-
cia sanitária” agressiva.
O britânico Mark Malloch
Brown, que foi vice-secretário-
geral da ONU na gestão de Kofi
Annan, espera que o medo gene-
ralizado de um confronto entre
EUA e China provoque uma no-
va onda de valorização das res-
postas multilaterais. Apesar de
se dizer esperançoso, ele acredi-
ta que um eventual fortaleci-
mento do sistema internacio-
nal não será impulsionado pe-
los americanos, mesmo se
Trump perder a eleição em no-
vembro.
Os EUA assumiram papel de
líderes na reorganização do
mundo no pós-guerra, que pas-

sou pela criação da ONU e do
sistema de Bretton Woods. A
política de Trump e a aversão
do presidente a organizações
multilaterais, no entanto, colo-
caram a Casa Branca em atrito
até com aliados e afastaram os
EUA da posição de liderança na
resolução de crises, no exato
momento em que a China bus-
ca uma liderança mundial cor-
respondente ao seu peso econô-
mico.
Brown é atualmente conse-
lheiro da consultoria de risco
Eurasia e integrante do comitê
externo do FMI de aconselha-
mento nas respostas à crise
atual. Para ele, os EUA olham
para a China como um rival,
mas as ambições chinesas são
mais moderadas do que o que
os americanos fazem parecer.
“A China ambiciona compe-
tir com os EUA pela liderança

global em áreas de baixo custo.
No momento, vemos a entrega
(pela China) de equipamentos
de proteção individual e respira-
dores. Mas a China não está
pronta nem tem o apetite para
desafiar completamente os
americanos neste sistema inter-
nacional”, afirmou Brown, em
entrevista ao Estadão.
A seis meses da eleição presi-
dencial americana, independen-
temente das discussões sobre o
assunto, apontar a China como
culpada e a OMS como leniente
é conveniente para a retórica
política de Trump. No Partido
Republicano, uma cartilha de
aconselhamento de estratégia
eleitoral para candidatos ao Se-
nado sugere culpar a China pela
pandemia e não abordar com
eleitores as ações tomadas pela
Casa Branca para conter o ví-
rus.

Disputas comerciais e busca por espaço geopolítico apenas se intensificaram durante a pandemia de coronavírus; governo americano


busca jogar a culpa do surto nos chineses, que respondem com uma diplomacia sanitária cada vez mais agressiva em escala global


lRealidade

Trump ameaça


e Xi pede união


CARLOS BARRIA/REUTERS-6/4/

“Eu sei que as pessoas se
sentem desconfortáveis
com o termo,
mas acho que temos
de ser honestos e
chamar isso pelo que é.
Este é o começo
de uma nova
Guerra Fria”
Clete Willems
EX-ASSESSOR DA CASA BRANCA EM
ENTREVISTA À EMISSORA CNBC

Conexões. Xi Jinping e Donald Trump em Mar-a-Lago: relações comerciais e investimentos embaralham relação cada vez mais tensa entre os dois países

Na quinta-feira, o presiden-
te Donald Trump endure-
ceu sua retórica contra a
China, dizendo que não vai
falar com Xi Jinping, além
de ameaçar cortar laços bila-
terais em razão de como Pe-
quim lidou com a covid-19.
No dia seguinte, Xi tentou
diminuir o atrito e pediu re-
forço da cooperação na luta
contra a pandemia.

PARA LEMBRAR

STR / AFP

Preocupação com


avanço global da China


é identificada nos


dois maiores partidos


dos Estados Unidos


Expansão. Fábrica de máscaras em Nantong, na China: diplomacia sanitária agressiva
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