Planeta abril/maio 2019 15
Favela em Lagos, Nigéria: os direitos humanos não fazem diferença no cotidiano dos moradores
Mas como garantir o respeito pe-
los direitos humanos?
AN-NA’IM – Não quero dizer que não
precisamos de direitos humanos ou que
sua proteção não pode ser concretizada
na prática. O que desejo enfatizar é que
devemos ter clareza de onde os direitos
humanos vêm e de que forma – incluin-
do questões sobre como esses direitos
são definidos e operacionalizados.
Para mim, os direitos humanos de-
vem ser definidos pelas pessoas que os
aceitam e vivem de acordo com eles no
dia a dia, e não impostas por antigas po-
tências coloniais em suas ex-colônias ou
por delegados de estados pós-coloniais e
burocratas internacionais.
Em segundo lugar, as normas de di-
reitos humanos devem ser implemen-
tadas por meio de etapas contextuais
realistas adequadas às necessidades e
aos recursos das comunidades relevan-
tes, e não pela promulgação de uma le-
gislação altissonante apresentada em
reuniões estéreis de órgãos internacio-
nais e conferências diplomáticas ou
acadêmicas.
Em terceiro lugar, as estratégias de
implementação devem ser profunda-
mente contextuais e ficar sob o contro-
le dos sujeitos humanos desses direitos
em todos os lugares.
Pode exemplificar?
AN-NA’IM – Se quero combater a mu-
tilação genital feminina no Sudão, por
exemplo, não posso fazê-lo com uma
declaração emitida em Genebra, ou
mesmo com o Sudão emitindo uma lei.
Mas posso fazê-lo mudando as atitudes
nas comunidades. Essa é a chave.
No Sudão, os britânicos emendaram
o Código Penal para tornar a mutilação
genital feminina punível com dois anos
de prisão em 1946, o ano em que nas-
ci. Tenho 72 anos e essa mutilação ain-
da existe para mais de 90% da popula-
ção. Que eu saiba, não houve um único
processo. Matar pela “honra” é um pro-
blema semelhante. Essas são áreas cla-
ras onde precisamos ter transformação.
os direitos
huManos deveM
ser definidos
Pelas Pessoas
que os aceitaM e
viveM de acordo
coM eles
O terceiro “C” levanta a questão de sa-
ber se os princípios dos direitos humanos
são operacionalizados na prática e acessí-
veis às pessoas cujos direitos estão em jo-
go. Que diferença os direitos humanos têm
para uma pessoa que vive em pobreza ex-
trema no Cairo, em Karachi ou Lagos?
qual deveria ser o papel do esta-
do na proteção dos direitos hu-
manos?
AN-NA’IM – A proteção dos direitos em
qualquer lugar acontece no nível dos di-
reitos civis, não no dos direitos humanos
- em outras palavras, a proteção é conce-
dida pelos países aos cidadãos e aos cha-
mados “residentes legais”, nunca aos se-
res humanos como tal.
É por isso que os refugiados e os tra-
balhadores migrantes, por exemplo, não
gozam da proteção de seus direitos hu-
manos, conforme proclamados pela De-
claração Universal dos Direitos Huma-
nos. Até mesmo os direitos dos cidadãos
e residentes legais são determinados
pelo Estado a cada passo do caminho.
Sempre são países que decidem nego-
ciar tratados com outros países, ratificar
ou ignorar tratados internacionais rele-
vantes e determinar o modo e o esco-
po da proteção dos direitos de qualquer
pessoa sujeita à sua jurisdição.
Todo o campo dos direitos humanos
está sob a autoridade da soberania do Es-
tado. O direito internacional global não
pretende forçar nenhum país a fazer algo.
A ONU e todas as outras organizações in-
ternacionais são constituídas e governa-
das por países; elas só podem fazer o que
os países lhes permitem, e no âmbito e
forma autorizados por eles.
Tudo isso pode ser apropriado para o
atual estado do desenvolvimento huma-
no, mas não é bom para a proteção dos di-
reitos humanos. É por isso que falo do pa-
radoxo da autorregulação pelos países em
contraposição aos direitos fundamentais
arraigados, que supostamente estão além
do controle e da manipulação do Estado.
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