O Estado de São Paulo (2020-05-19)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 2020 Metrópole A


FERNANDO


REINACH


A


real porcentagem de pessoas
já infectadas pelo coronaví-
rus começou a ser medida no
Brasil. No Rio Grande do Sul, esse
número é de 0,22% da população, na
cidade de Ribeirão Preto, de 1,2% e
nas áreas mais afetadas da cidade de
São Paulo, de 5,2%. Essa semana vai
ser divulgado um estudo que cobre
todo o Brasil. À medida que esse nú-
mero for subindo as mortes aumen-
tam, mas fica mais seguro relaxar as
medidas de distanciamento. Só por
esse motivo vale a pena entender co-
mo a famosa imunidade de rebanho
funciona durante uma pandemia.
Imagine um país com 100 mi-
lhões de habitantes no qual 99 mi-
lhões (99%) já foram infectados pe-
lo coronavírus e possuem algum ti-
po de imunidade. Imagine agora
que uma pessoa infectada chegue
ao país e comece a espalhar o vírus.
No aeroporto ela vai ficar próxima
de dez pessoas, mas provavelmente
todas já são resistentes, no hotel
acontece a mesma coisa e assim por
diante. Como essa pessoa transmi-
te o vírus por somente uma ou duas
semanas e vai passar parte desse

tempo de cama, é bem provável que ela
não espirre perto de nenhum de 1 mi-
lhão de pessoas (1%) que ainda não fo-
ram infectadas. Nesse caso ela vai se
curar sem infectar ninguém.
Nessas condições, os epidemiologis-
tas dizem que aquele 1 milhão de pes-
soas suscetíveis, que ainda podem pe-
gar o vírus, está protegido do contágio
pelas 99% que já foram infectados. Es-
sa proteção oferecida pelos já infecta-
dos aos ainda não infectados é o que
chamamos de imunidade do rebanho.
Agora imagine o contrário. Nesse país
imaginário somente 1% das pessoas já
foram infectadas, as outras 99% estão
à mercê do vírus. É possível que nosso
viajante hipotético infecte duas ou
três pessoas na sua estadia e inicie um
novo foco de infecções.
Examinando esse exemplo fica claro
que cada pessoa já infectada gera uma
pequena proteção para todas as ou-
tras, mas essa proteção é minúscula.
Assim, à medida que mais pessoas são
infectadas, e se tornam resistentes,
maior a proteção que elas oferecem à
população (o rebanho). Mas qual é a
porcentagem das pessoas que preci-
sam ser infectadas para que essa prote-

ção tenha um efeito relevante? Esse nú-
mero depende da capacidade do vírus
de se espalhar. Se ele se espalha facil-
mente, esse efeito só vai ser sentido
quando uma grande parte da popula-
ção já tiver sido infectada. Por outro
lado, se o vírus se espalha com dificul-
dade, a proteção é observada com uma
fração menor da população tendo sido
infectada.
A facilidade com que um vírus se es-
palha é medida por um número chama-
do R0 (o número de pessoas infecta-
das por uma pessoa infectada logo no
início da epidemia, antes da implemen-
tação das medidas de controle). A fór-
mula para calcular a fração da popula-
ção que precisa ser resistente para ob-
servarmos um efeito relevante é a se-

guinte: IR=1-(1/R0). No caso do novo
coronavírus, acredita-se que o R0 está
entre 2,5 e 3,5, portanto a porcentagem
das pessoas que precisam ser infecta-
das para observarmos um efeito pro-
nunciado da imunidade de rebanho es-
tá entre 60% e 71%. Essa conta é válida
para populações homogêneas onde to-
dos os indivíduos são idênticos e têm a
mesma capacidade de propagação do
vírus, ou a mesma suscetibilidade à
doença. Já foi demonstrado que esse
número pode ser bem menor se a hete-
rogeneidade da população for alta.
Esse fenômeno já foi observado em

diversas doenças, até mesmo na malá-
ria aqui no Brasil. Assim, pode ser que
venhamos a atingir a imunidade de re-
banho antes de 60% da população ter
sido infectada. Esses modelos suge-
rem que a porcentagem necessária pa-
ra obtermos a imunidade de rebanho
pode ser significativamente menor se
a heterogeneidade da população for al-
ta. Sabemos que a população é hetero-
gênea no que se refere à suscetibilida-
de ao vírus (veja o que acontece com
crianças e idosos ou a diferença entre
homens e mulheres) mas não sabemos
o grau de heterogeneidade da popula-
ção. Assim é quase certeza que a imuni-
dade do rebanho para o novo coronaví-
rus será atingida antes de 60 ou 70% da
população ser infectada, mas ainda
não sabemos qual é esse número. Isso
vai depender de estudos que determi-
nem a heterogeneidade da população.
A porcentagem mais alta de pessoas
infectadas no Brasil até agora foi de
5,2% nos seis distritos que possuem
mais casos e óbitos da doença em São
Paulo. Nessa área de São Paulo, para
atingirmos 60% faltam ainda 55 pon-
tos porcentuais. Quando olhamos o
número 5,2% podemos imaginar que
esse número é baixo, pois 95% da popu-
lação ainda não foi infectada. Mas é
bom lembrar que os dados da Prefeitu-
ra mostram que o número de casos au-
mentou 1,88 vez nos últimos 15 dias
(passou de 20.464 em 3 de maio para
38.605 em 17 de maio). E isso durante a
vigência das medidas de isolamento so-
cial. Se a epidemia continuar a progre-
dir nessa velocidade, teremos 9,7% da

população infectada em mais 15
dias, 18,3% em 30 dias e 65% em exa-
tos dois meses.
Ou seja, se tudo continuar como
está, chegaremos à imunidade de
rebanho em dois meses. É claro
que se a epidemia continuar a pro-
gredir nessa velocidade o número
de mortes será enorme e segura-
mente, muito antes de dois meses,
o sistema de saúde estará comple-
tamente de joelhos.
O interessante é fazer essa mes-
ma conta com os números do Rio
Grande do Sul, que tem hoje 0,22%
da população infectada. Em dois
meses, se os números forem multi-
plicados por 1,88 a cada duas sema-
nas, o Rio Grande do Sul terá
2,75%. Isso mostra como um cres-
cimento em progressão geométri-
ca engana. O Rio Grande do Sul só
atingirá os números que São Paulo
tem hoje aproximadamente duas
semanas depois de São Paulo atin-
gir 65%.
O que esses resultados mostram
é que 5,2% de pessoas infectadas
em uma epidemia que se alastra a
uma taxa de 1,88 vez a cada duas
semanas é um número extrema-
mente alto.

]
MAIS INFORMAÇÕES: INDIVIDUAL VARIA-
TION IN SUSCEPTIBILITY OR EXPOSURE
TO SARS-COV-2 LOWERS THE HERD IMMU-
NITY THRESHOLD.

É BIÓLOGO

E-MAIL: [email protected]

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Gonçalo Junior


Prioridade global diante dos
4,8 milhões de casos confir-
mados e mais de 316 mil mor-
tes causadas pelo novo coro-
navírus, a corrida para o de-
senvolvimento de uma vaci-
na está cada vez mais intensa.
Depois que cientistas da Uni-
versidade de Oxford se mos-
traram otimistas na semana
passada, ontem a boa notícia
veio dos Estados Unidos. A
empresa de biotecnologia
Moderna, em parceria com o
Instituto Nacional de Alergia
e Doenças Infecciosas, anun-
ciou testes preliminares posi-
tivos em ensaios clínicos que
começaram em março. Fal-
tam, no entanto, os testes em
larga escala, que devem ser
realizados em julho.
Os testes iniciais foram feitos
com 45 voluntários, que recebe-
ram dosagens diferentes da va-
cina. Essas pessoas saudáveis,
sem contaminação do coronaví-
rus, têm de 18 a 55 anos. Os pri-
meiros resultados foram basea-
dos na reação das oito primei-
ras pessoas que receberam, ca-
da uma, duas doses da vacina, a
partir de março. Os voluntários
produziram anticorpos capa-
zes de impedir a replicação do
vírus. Esse é o principal requisi-
to para uma vacina eficaz. Os
níveis dos chamados “anticor-
pos neutralizantes” correspon-
diam aos encontrados em pa-
cientes que se recuperaram
após contrair o vírus na comuni-
dade. As únicas reações adver-
sas foram vermelhidão e uma
sensação de dor muscular nos
braços de um voluntário.
A empresa anunciou que de-
ve realizar novos testes, a cha-
mada fase 2, em julho e vai en-
volver 600 pessoas, seleciona-
das aleatoriamente. Essa é uma
etapa fundamental para a defini-
ção da eficácia da vacina. A
Food and Drug Administration
(FDA), órgão equivalente à An-
visa no Brasil, já autorizou essa
segunda fase. Caso os novos tes-
tes também sejam bem-sucedi-
dos, o diretor médico da Moder-
na, Tal Zaks, afirma que uma va-
cina poderá ficar disponível pa-
ra uso generalizado até o fim
deste ano ou no início de 2021.
“A fase provisória 1, embora em
estágio inicial, demonstra que a
vacinação com o mRNA-
produz uma resposta imune da
mesma magnitude que a provo-
cada por infecção natural”, dis-
se em comunicado.
Embora sejam animadores,
os resultados não significam


que a vacina funcione. Somente
estudos maiores, de maior dura-
ção, poderão determinar se a
imunização pode impedir a
doença. Especialistas brasilei-
ros reafirmam a necessidade de
novos testes. “Os dados suge-
rem que duas das três doses tes-
tadas foram seguras e suficien-
tes para o desenvolvimento ade-
quado de resposta imunológi-
ca. Agora a vacina precisa pas-
sar por estudos maiores, de fa-
ses 2 e 3, para se avaliar melhor
seu perfil de eficácia e seguran-
ça”, explica Márcio Bitten-
court, mestre em Saúde Pública
e médico do Hospital Universi-
tário da USP. “Os sinais iniciais
são positivos, mas a aprovação
só irá ocorrer após a adequada
avaliação nas outras etapas. Por
causa da urgência, essas etapas
podem acontecer de forma ace-
lerada, mas não podem ser pula-
das, o que traria riscos”, diz.
“O estudo é promissor, mas é
muito preliminar. Eles reconhe-
cem isso. Ainda não se sabe o
quanto de anticorpo é necessá-
rio para conferir proteção”, opi-
na Eduardo Flores, virologista
da Universidade Federal de San-
ta Maria, no Rio Grande do Sul.
Outro virologista, Paulo
Eduardo Brandão, da Faculda-
de de Medicina Veterinária e
Zootecnia da USP, explica que,
além de gerar anticorpos, uma
vacina tem de oferecer prote-
ção integral. “A vacina em hu-
manos foi demonstrada como

capaz de gerar anticorpos. Mas
ainda é necessário que se de-
monstre que ela é protetora. A
proteção nem sempre tem rela-
ção direta com a presença de an-
ticorpos ou de apenas anticor-
pos contra uma proteína viral.
A proteção contra coronavírus
envolve outras proteínas.”

Corrida. Dezenas de outras em-
presas e universidades também
estão na corrida para criar vaci-
nas. Também fazem testes em
seres humanos a Pfizer e sua
parceira alemã BioNTECh, a
chinesa CanSino e a Universida-
de de Oxford, que trabalha com
a farmacêutica AstraZeneca.
Em geral, vacinas usam uma
versão “mais fraca” do vírus pa-
ra desencadear a resposta imu-
nológica. A urgência para o com-
bate à covid-19, no entanto, esti-
mula o desenvolvimento de no-
vas tecnologias. A estratégia do
laboratório americano envolve
um segmento de material gené-
tico do vírus chamado RNA
mensageiro ou mRNA. O RNA
(espécie de “parente” do DNA)

também aparece em células hu-
manas saudáveis, mas, em mui-
tos vírus, como o HIV ou o coro-
navírus. Quando um vírus infec-
ta uma célula, ele consegue se
multiplicar com base no mate-
rial genético da própria célula.
O RNA mensageiro “viaja” pela
célula levando as informações
necessárias para ajudar nesta re-
plicação. Com o material de
uma célula humana, por exem-
plo, o vírus consegue se repro-
duzir e infectar mais células.
As pesquisas tentam modifi-
car o RNA mensageiro e fazê-lo
“comandar” a célula para produ-
zir outras substâncias, mais be-
néficas para a resposta do cor-
po ao vírus. O RNA mensageiro
modificado atua sobretudo na
produção dos chamados antíge-
nos, proteínas que fazem o cor-
po começar a produzir anticor-
pos que vão combater os vírus.
A vacina em fase clínica da Pfi-
zer também usa esse modelo de
mudança do RNA. Os especialis-
tas afirmam que o desafio agora
é a comprovação de sua eficá-
cia. Até hoje, nenhuma vacina
de RNA foi liberada para uso co-
mercial. Ontem, a divulgação
dos resultados promissores
mostrou o quanto a sociedade
americana, em especial o merca-
do, está desesperada por boas
notícias. A companhia já pas-
sou de US$ 30 bilhões em valor
de mercado, com ação negocia-
da a mais de 82 dólares por volta
das 12 horas de ontem.

Empresa americana anunciou que oito pessoas que receberam dose do imunizante desenvolveram anticorpos contra o novo coronavírus


lComplexo

5,2% de infectados


Podemos chegar à imunidade de
rebanho em dois meses – com o
sistema de saúde de joelhos

Vacina tem bom resultado em humanos


●Pesquisa dos EUA tem resultados iniciais positivos na busca por
uma vacina contra o coronavírus

PESQUISA

INFOGRÁFICO/ESTADÃO

1 Método da pesquisa

Uso do material genético do vírus chamado RNA mensageiro
(RNAm). A ideia é induzir o sistema imunológico a agir quando o
próprio vírus resolver atacar

2 Fase pré-clínica

Testes em camundongos
mostraram a criação de anticorpos
semelhantes aos de animais que
se recuperaram da doença

3 Fase clínica
PRIMEIRA ETAPA
Os testes foram feitos em 45 voluntários nos EUA. Os voluntários
foram divididos em três grupos, que receberam duas doses da vacina
por injeção intramuscular no braço, com 28 dias de intervalo

25 MICROGRAMAS
(DOSAGEM BAIXA)

100 MICROGRAMAS
(DOSAGEM MÉDIA)

250 MICROGRAMAS
(DOSAGEM ALTA)

RESULTADOS INICIAIS
Os resultados são baseados na reação das oito primeiras
pessoas vacinadas em março. A capacidade de criar anticorpos
variou de acordo com a dose

Identificação O coronavírus
tem esse nome
porque possui
"espinhos" como
uma coroa

Uma vez
conectado à
célula humana
ele se reproduz

RECEPTOR
ECA 2

GENOMA
DO VÍRUS
(RNAm)

CÉLULA
HUMANA

A primeira coisa a
fazer é identificar o
agente causador da
doença. No caso o
coronavírus

O vírus usa os espinhos
para se conectar ao
receptor ECA 2 das
células humanas

4 PESSOAS COM A
DOSE DE 25 MCG = OK

4 PESSOAS COM A
DOSE DE 100 MCG = OK

QUEM RECEBEU DOSES DE
100 MCG EXCEDEU OS
NÍVEIS EM PACIENTES
RECUPERADOS

SEGUNDA ETAPA


  • Os testes serão feitos em 600 pessoas,
    escolhidas de forma aleatória

  • O teste vai determinar a eficiência da
    vacina até julho


BRIAN SNYDER / REUTERS

“Sintetizar RNA é um
processo complexo e ainda
não testado na quantidade
exigida em âmbito
mundial.”
Paulo Eduardo Brandão
VIROLOGISTA DA USP

EUA. Empresa tem a sigla RNA no nome, estratégia usada para tentar conferir imunidade
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