O Estado de São Paulo (2020-05-19)

(Antfer) #1

Caderno 2


Michel Piccoli, adeus ao grande ator versátil PÁG. H6


NA


Danilo Casaletti
ESPECIAL PARA O ESTADO


O isolamento social acertou em
cheio a área musical. Com os
shows cancelados – e sem previ-
são de volta –, as redes sociais vi-
raram palco. Mas há artistas que
estão indo além de só cantar para
o seu público nas lives. Do Rio de
Janeiro, Teresa Cristina promo-
ve noites de papo, música e dis-
cussão política. De São Paulo, o
maranhense Zeca Baleiro dá cur-
sos e até lê para crianças. De Per-
nambuco, Duda Beat lança no-
vas versões para suas canções,
faz bate-papos e posta looks ins-
piradores. Cada um a seu jeito,
eles se mantêm perto dos fãs –
anônimos e famosos.
Margela Nobre, de 34 anos,
acompanha com atenção as lives
e conteúdos postados por Duda
Beat. Ela tem uma razão espe-
cial: o último show a que assistiu,
antes de a pandemia mudar tu-
do, foi o da artista, em 7 de mar-
ço, em João Pessoa. “A apresenta-
ção dela se tornou um marco pra
cidade por ter sido a última aglo-
meração permitida antes do iní-
cio da quarentena, o que a fez de-
la inesquecível”, diz. Prova disso
é que Margela costuma fazer vi-
deochamadas com os amigos du-
rante as lives da cantora. “Ela
tem um estilo próprio, os figuri-
nos são um espetáculo à parte”,
completa. De fato, Duda, que já
tem uma imagem acoplada com
a questão da moda, tem posta-
dos diferentes looks, mesmo du-
rante a quarentena.
Dona do hit Bixinho, Duda não
parou de produzir música neste
período de isolamento. Com
uma série chamada #DudaBea-
tEmCasa, ela lança, em seu canal
de YouTube, clipes de músicas
que gravou, como Chega, Bédi
Beat e Egoísta. Todos com a parti-
cipação dos integrantes de sua
banda – cada um em sua casa –,
que recebem cachê pelo traba-
lho. “Criar para mim é colocar pa-
ra fora sentimentos e, de uma cer-
ta forma, me conectar com as
pessoas”, diz Duda, que está em
fase de composição. Para ela, as
lives são, de fato, uma alternativa
para manter o contato com os
fãs. “Esses ‘shows’ têm sido uma
forma de eu conseguir remune-
rar a distância os músicos que
me acompanham e ainda me co-


nectar com o público que está
sem os shows”, diz a cantora.
Outro lançamento que Duda
promoveu, há cerca de uma se-
mana, foi a canção Vem Pro Meu
Condo, lançada em parceria com
o AfroB e Tropkillaz. “Olha, ape-
sar do título, peço que você não
vá a lugar nenhum, se for possí-
vel! #fiqueemcasa bonitinho,
cantando e dançando com a gen-
te”, escreveu, em seu Instagram.

Boteco virtual. Todas as noi-
tes, desde março, a cantora Tere-
sa Cristina arrasta para sua conta
no Instagram, em média, 2.500
pessoas. Moradora da Vila da Pe-
nha, no subúrbio carioca, com a
mãe de 80 anos, Teresa faz parte
de um grupo vulnerável da popu-
lação. “Fiquei preocupada com a
minha saúde mental, veio um iní-
cio de desesperança”, conta. Foi
então que decidiu aderir às lives
para conversar e dividir as noites
insones com os fãs. De início,
elas eram feitas após o Big Bro-
ther Brasil. Agora, começam por
volta das 22 horas e podem varar
a madrugada.
Os encontros online – infor-
mal e com cara de uma conversa
de botequim, no melhor estilo ca-
rioca – foram crescendo de uma
forma que surpreendeu a pró-
pria artista. Cada dia com um te-
ma diferente, as lives já aborda-
ram as obras de nomes como
Candeia, Djavan, Clara Nunes e
Dona Yvone Lara e contam com
seguidores fiéis, os ‘cristiners’.
“Tem um gesto muito grande
de carinho por trás disso que vai
muito além da recompensa mate-
rial”, diz Teresa que, até o mo-
mento, não conseguiu nenhum
patrocínio ou foi chamada para
participar de alguma apresenta-
ção online com cachê. Já seus se-
guidores fazem questão de “fi-
nanciar” a live como podem.
Mandam cerveja, porções de co-
xinha, pão de alho e presentes co-

mo vestidos e bijuterias. “Os mi-
mos vêm sempre com algum bi-
lhete com palavras de carinho. Is-
so me toca”, diz a artista.
Além dos fãs, os famosos tam-
bém costumam bater ponto para
ver Teresa contar histórias e can-
tar. Atrizes como Mariana Xime-
nes, Camila Pitanga e Maria Ri-
beiro, além das cantoras Leila Pi-
nheiro, Simone, Daniela Mer-
cury e Áurea Martins, são as mais

frequentes. “Teresa é sábia, con-
ta histórias do samba, dos canto-
res, tem gatilhos muito saboro-
sos, além de ter simpatia ímpar!
‘Estar’ com ela me traz suspiros
de alegrias e emoções nesse mo-
mento tão delicado. Recomendo
para todos porque Teresa é cura
e amor puro!”, diz Mariana Xime-
nes. Caetano Veloso também já
apareceu. De pijama, deitado na
cama, ouviu Teresa cantar o sam-

ba Alvorada para ele.
Na noite do dia 14 de maio, a
visita foi do ex-presidente Lula.
Ele entrou na live cuja tema era o
músico João Gilberto – para sur-
presa de Teresa e de quem assis-
tia. Ela, que se posiciona politica-
mente nos encontros virtuais,
deixa claro que não concorda
com o governo do presidente
Jair Bolsonaro e afirma não se im-
portar com os críticos. “Samba é
resistência, nasceu de uma indig-
nação. Não quero falar de igno-
rância, só de carinho”, diz ela,
que pretende seguir com os en-
contros diários com o público.
“Terei que entrar para o ‘LA’, 0
Livers Anônimos, quando essa fa-
se passar”, diverte-se.
O cantor, compositor e produ-
tor Zeca Baleiro tinha agendado
a oficina O Charme Banal das Can-
ções, em parceria com o Centro
Cultural Escrevedeira, para falar
sobre seu processo de composi-
ção, em abril. A atividade seria
presencial, mas, obviamente, foi
feita totalmente online. “Topei o
desafio e foi bem interessante e
proveitoso, uma experiência
muito rica”, diz Baleiro.
Com dez apresentações cance-
ladas, o músico trabalha na pro-
dução de três discos – Anastácia
Com Vida, álbum de celebração
dos 80 anos da cantora Anastá-
cia; da cantora paraense Liah
Soares e de seu conterrâ-
neo Erasmo Dibell –,
além da produção
de um disco de re-
leituras de can-
ções portuguesas con-
temporâneas, um outro
com novas roupagens para
suas canções mais conhecidas e
duas trilhas sonoras para filmes.
“Há muito sobre o que pensar – e
compor – neste momento”, diz.
Apesar de estar bem ocupado,
Baleiro arruma tempo para fazer
lives, aceitar o convite de amigos
para duetos virtuais, participar
de bate-papos online e até ler pa-
ra crianças, como fez dia desses.
“Gerar conteúdo para as redes
neste momento é mais do que bu-
siness, é utilidade pública, res-
ponsabilidade social. Há gente
deprimida, desempregada, assus-
tada, e a nossa música e nossa in-
teração podem ser um alento”,
conta o músico, que fez uma live
especial, O Amor no Caos, nome
de um dos seus álbuns, para arre-
cadar fundos para hospitais do
Maranhão. “É hora de toda a so-
ciedade civil se manifestar. As-
sim como os profissionais da saú-
de estão na linha de fogo, outros
profissionais também podem e
devem doar seu trabalho.”
Baleiro ainda não sabe como a
cadeia produtiva da música vai
se rearranjar após o período de
isolamento. Por ora, para ele, as
lives se mostram uma solução,
mesmo que não sejam suficien-
tes para atender todos os profis-
sionais envolvidos em um show.
“As lives agora começam a ser pa-
gas, ter patrocínios, etc. A partir
de agora, vai ser possível dar tra-
balho a alguns membros da equi-
pe, como roadies e técnicos de
som. Não tem como suprir toda
a cadeia, infelizmente.”

Duda Beat. Remuneração para os músicos de suas lives

LIVES


ARTISTAS SE REINVENTAM EM


Teresa Cristina, Zeca Baleiro e


Duda Beat diversificam exibições


QUARENTENA


O CAMINHO DAS DOAÇÕES DAS LIVES


Shows que arrecadaram


mais de R$ 8 milhões


destinam o dinheiro


para hospitais e


instituições de auxílio


SILVIA ZAMBONI

LEO AVERSA

FERNANDO TOMAZ

Zeca Baleiro. Fundos para hospitais e leitura para crianças

Teresa Cristina. Canta e
conta histórias do samba

Lives musicais têm ajudado ins-
tituições que atuam na área de
saúde ou que assistem aqueles
que estão em situação de vulne-
rabilidade em tempos do novo


coronavírus.
Uma das instituições que têm
recebido recursos das lives é o
Hospital de Amor (antigo Hos-
pital do Câncer), de Barretos,
que, entre abril e maio, recebeu
cerca de R$ 3 milhões arrecada-
dos em apresentações online de
nomes como Fernando & Soro-
caba, Marcos & Belutti, Renato
Teixeira e o especial Amigos,
que reúne as duplas Chitãozi-
nho & Xororó. Zezé di Camargo

& Luciano e o cantor Leonardo.
O valor supre parte do que era
arrecadado com leilões e shows
realizados em prol do hospital,
que chegavam a somar R$ 8 mi-
lhões por mês – o déficit do hos-
pital, que só atende pelo SUS, é
de R$ 25 milhões mensais.
“Além das doações, que acon-
tecem simultaneamente às li-
ves, elas também têm atraído
doadores ao longo dos dias, que
assistem às apresentações que

ficam disponíveis no YouTube.
Isso tem sido muito importan-
te para nós”, diz Larissa Mello,
coordenadora de campanhas
do Hospital do Amor, que expli-
ca que essas doações posterio-
res ajudaram a dar um impulso
em outra iniciativa, a Parceiros
pela Vida. “Nos relacionamos
com os doadores das lives e do-
bramos as contribuições dessa
campanha que nos ajuda a man-
ter os atendimentos oncológi-

cos”, conta. O valor saltou de
R$ 1 milhão para R$ 2,3 milhões
em tempos de pandemia.
A Cufa – Central Única das Fa-
velas –, que tem como carro-che-
fe a iniciativa Mães da Favela no
amparo a mães solteiras ou che-
fe de famílias em comunidades
de todo o Brasil, também apare-
ce entre as preferidas dos artis-
tas. A live da cantora Marília
Mendonça, no dia 8 de abril, ar-
recadou mais de R$ 400 mil,

além de doações de alimentos e
produtos de higiene e limpeza,
que foram distribuídas entre ins-
tituições de todo o País, como o
Hospital Araújo Jorge, em Goiâ-
nia, e Cufas de Salvador e do Rio.
Fora do universo sertanejo,
um dos campeões de arrecada-
ção foi o rapper paulistano Emi-
cida, que, no dia 10 de maio, fez
uma live de oito horas. A apre-
sentação gerou uma arrecada-
ção de mais de R$ 400 mil, feita
por meio de um QR Code na te-
la. O Pic Pay, o patrocinador, do-
brou o valor, que foi destinado
ao projeto Mães da Favela. / D.C.

FRANCOIS GUILLOT/AFP

%HermesFileInfo:H-1:20200519:H1 TERÇA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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