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H6 Especial TERÇA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
FRANCÊS
A LENDA DO
I
mpossibilitado de sair de casa,
ainda que usando máscara, o cro-
nista cuidou de encomendar pro-
visões no sacolão literário das ime-
diações. Parece, no entanto, que con-
frades mais espertos passaram an-
tes, pois lá não restava mais que um
punhado de historietas – resistentes,
espera ele, a uma esfregada com pa-
no embebido em álcool 70, e suficien-
tes para compor um mexidão de qua-
rentena minimamente palatável.
*
Grávida daquele que seria seu pri-
meiro filho, a moça, aos prantos, foi
bater na casa da tia, afamada, e não
só na família, por sua infalível capaci-
dade de achar o lado bom nas coisas
mais irremediáveis. Em lágrimas,
contou que tinha perdido a gesta-
ção, naquela altura em que tudo está
prontinho – berço comprado, quar-
to pintado de azul-claro (seria um
menino), enxoval no armário, padri-
nhos convidados, nome escolhido...
Silenciosa até aquele momento,
não por falta de solidariedade, mas
de palavras analgésicas a ministrar,
a tia agarrou-se à deixa e à mão da
sobrinha:
- Como é que ele ia se chamar?
Entre soluços, a moça tartamu-
deou o nome, que acontecia ser dos
mais esquisitos, verdadeira bizarria
onomástica que a tia apanhou como
boia salvadora: - Tá explicado! Ele ficou sabendo e
desistiu...
- Não menos chorosa, uma das primas
ligou para contar que a filha, cujo casa-
mento parecia ir tão direitinho, tinha
sido abandonada pelo marido. De uma
hora para outra, o Wagner fez a mala e
se mandou. Não tardaria a refluir para
o lar, pois se tratava de um desses casos
de separação que não dão certo – sim,
acontece –, mas naquele momento tu-
do indicava tratar-se de naufrágio con-
sumado.
Como era do seu feitio, deixou a pri-
ma falar, falar, até esvaziar a taça da
amargura. E então sacou uma conversa
tortuosa em que a coisa, inesperada-
mente, era vista pelo outro lado – pelo
lado da mãe do Wagner:
- Pense um pouco no que essa criatura
deve estar passando, querida, diante do
papelão que o filho fez: isto, sim, é moti-
vo para sofrimento de mãe, muito mais
do que ver a filha largada pelo marido.
A conversinha funcionou, pois ao ca-
bo de uns minutos as lágrimas foram
secando no outro lado. - Você tem razão. Estou sofrendo,
mas para a mãe do Wagner a coisa deve
estar sendo ainda mais penosa.
Nem um mês se passou e o telefone
tocava, agora no sentido inverso. An-
tes tão serena, a conselheira, em fúria,
anunciou à prima: - Virei mãe de Wagner!
Coberta de vergonha social, contou
que o mais velho, empencado de filhos,
tinha tido a cachimônia – adorava esta
palavra – de trocar a mulher por uma
fulana, ainda por cima bem mais nova. E
o pior é que, no correr dos meses, a sepa-
ração deu certo – ao mesmo tempo em
que na família uma condição se solidifi-
cava. Ainda hoje, volta e meia se ouve ali:
- Sabe quem agora está de mãe de
Wagner?
- Tinha pavor de que alguma de suas
crias passasse da conta, desse vexame,
caísse na boca do povo. Em se tratando
das meninas, então!
- Virar moça falada, já pensou?
De saída para uma festa, aconteci-
mento visto não como motivo de ale-
gria, mas como ocasião carregada de
armadilhas para o corpo e para a alma,
nenhuma das meninas punha o pé na
rua sem ouvir um feixe de recomenda-
ções maternas – a começar pela mais
atemporal, feita até mesmo em escal-
dantes noites de verão: - Joga um casaquinho nas costas.
Outra que nunca faltava: - Leva uma bolsinha com alguma coi-
sa, para o caso de ficar sem assunto.
O mais importante vinha no final:
- Passa despercebida, minha filha!
- Quando a menina, já taluda, fincava
o pé, decidida mesmo a sair para o cine-
ma com o namorado, a mãe jogava uma
derradeira cartada suasória:
- Quando a menina, já taluda, fincava
- Se no filme houver uma anedota
mais picante, minha filha, não ria.
Pausa. - Mas se de todo não for possível não
rir, espere o moço rir primeiro.
Como quem dissesse: ri melhor
quem ri por último.
- Quando crianças, seus filhos, em se
tratando de reuniões e festinhas, eram
imbatíveis no quesito bom comporta-
mento.
- Uns amores! – atestavam mães an-
fitriãs, sem esconder sua inveja benig-
na. – Não vá contar para as outras, mas
são os únicos que não avançam nos
doces...
De fato, bandejas de brigadeiros e
coxinhas que a molecada iria dizimar,
qual gafanhotos em plantação, passa-
vam incólumes por aqueles três.
O segredo estava naquilo que a mãe
aplicava neles, quisessem ou não, an-
tes de saírem de casa: um pratão de
sopa, desses capazes de dar cabo do
mais feroz apetite.
- Maklouf, repórter em estado puro
No espaço de poucos dias, perde-
mos Nirlando Beirão, Sérgio Sant’An-
na e, na semana passada, Luiz Maklouf
Carvalho. Diante da devastação, im-
possível não lembrar os versos de Ma-
nuel Bandeira no Rondó dos Cavali-
nhos, poema escrito quando, nos
anos 1930, um grande e querido es-
critor mexicano deixava o posto de
embaixador no Brasil:
“Alfonso Reyes partindo/ e tanta
gente ficando”.
De Maklouf, repórter em estado
puro, me ficou a memória de episó-
dios não só inesquecíveis como
exemplares, alguns dos quais vivi-
dos na redação paulistana do Jornal
do Brasil, onde trabalhamos juntos.
Penso em especial na sua reporta-
gem sobre Lurian, a filha que Lula
teve fora do casamento, trabalho
jornalístico cujos desdobramentos
contribuíram para levar Fernando
Collor à presidência da República,
nas eleições daquele ano de 1989.
Ficaram, para mim, duas lições
maiores. Uma: longe de constituir
segredo, a existência de Lurian
constava da ficha de Lula numa pu-
blicação da Câmara dos Deputa-
dos, à disposição, portanto, de qual-
quer um – mas entre os jornalistas,
e aí me incluo, apenas Maklouf sou-
be ver ali uma informação a escara-
funchar. Chamá-lo de “repórter in-
vestigativo”, como virou moda, se-
ria incorrer em pleonasmo. E há
também, não menos exemplar, o fa-
to de que Maklouf, homem de es-
querda, se entregou à tarefa já sa-
bendo que a reportagem, na reta
final das eleições, haveria de preju-
dicar o candidato mais próximo de
suas convicções políticas. Quantos
jornalistas, montados nas melho-
res intenções, teriam a coragem de
fazer o mesmo?
Caderno 2
Morre, aos 94 anos, de AVC, o ator
favorito de mestres da sétima arte
CINE
Humberto Werneck
Luiz Carlos Merten
Em 1995, para festejar o cente-
nário do cinema, uma grande ar-
tista, não apenas a diretora –
Agnès Varda –, desenvolveu um
projeto grandioso, mas que, in-
felizmente, não saiu tão bom co-
mo ela gostaria: As Cento e Uma
Noites. O filme teve direito a ga-
la em Cannes, tapete vermelho.
Michel Piccoli interpretava o
centenário Senhor Cinema. Gil-
les Jacob, então diretor-geral
do festival, recebeu-o na entra-
da do Palais. Eram grandes ami-
gos. Foi Jacob quem anunciou a
morte do grande Piccoli – segun-
do o jornal francês Libération,
Jacob disse que “Michel Piccoli
faleceu em 12 de maio, nos bra-
ços de sua mulher Ludvine e ao
lado de seus filhos Inord e Mis-
sia, de consequências de um aci-
dente vascular cerebral”. Ele es-
tava com 94 anos.
Descendente de italianos, Pic-
coli nasceu numa família de
músicos – mãe pianista, pai vio-
linista –, em Paris, no dia 27 de
dezembro de 1925. A arte estava
no horizonte e ele se tornou
ator. Não apenas dirigiu para
teatro, como dirigiu um teatro,
o Babylone. Se não foi realmen-
te sua estreia, a primeira vez
que se fez notar na tela foi num
filme de Jean Renoir – French
Can-Can, de 1954.
Seguiu-se, dois anos depois,
um filme de Luis Buñuel – La
Mort en Ce Jardin, que passa na
TV como A Morte no Jardim. Em
1963, foi o Ulisses moderno de
O Desprezo, o mais clássico fil-
me de Jean-Luc Godard, livre-
mente adaptado do romance de
Alberto Moravia. Piccoli faz o
roteirista, marido de Brigitte
Bardot, do filme dentro do fil-
me, que o lendário Fritz Lang
pretendeu rodar – uma versão
de A Odisseia, interpretada por
estátuas.
Em 1964, de novo com
Buñuel, fez O Diário de Uma Ca-
mareira. Não parou mais de fil-
mar. Tornou-se requisitado pe-
los maiores diretores – fez A
Guerra Acabou, com Alain Res-
nais; A Bela da Tarde, com
Buñuel; Duas Garotas Românti-
cas, com Jacques Demy; A Comi-
lança, com Marco Ferreri. Com
Buñuel fez ainda O Estranho Ca-
minho de São Tiago, O Discreto
Charme da Burguesia, O Fantas-
ma da Liberdade, Esse Obscuro
Objeto do Desejo. Idem com Fer-
reri: Dillinger Está Morto, A Últi-
ma Mulher.
Foi um dos atores preferidos
do mestre português Manoel
de Oliveira – Party, Vou Para Ca-
sa (no qual protagonizou a ge-
nial cena do sapato desamarra-
do), Espelho Mágico, Belle Tou-
jours, Encontro Único (o episó-
dio de Chacun son Cinéma). Vol-
tou a Renais (Vocês Ainda não
Viram Nada). E teve belos en-
contros com Claude Chabrol
(Dez Dias Fantásticos), Louis
Malle (Atlantic City e Primavera
em Maio), Jacques Rivette (A Be-
la Intrigante), Nanni Moretti
(Habemus Papam) e Léos Carax
(Holy Motors).
Mas uma parceria precisa ser
destacada, e talvez tenha sido a
maior de todas. Em 1970, for-
mou uma dupla inesquecível
com Romy Schneider, então no
auge da beleza e do talento, As
Coisas da Vida, de Claude Sau-
tet. O trio voltou em Sublime Re-
núncia e Mado. E, com Sautet,
ainda fez Vicente, Paulo, Francis-
co e os Outros. Sautet filmava o
homem comum, mesmo quan-
do submetido a circunstâncias
poderosas.
Sautet fez os filmes que Fran-
çois Truffaut, a partir de deter-
minado momento de sua carrei-
ra, talvez gostasse de ter feito.
Michel Piccoli casou-se três ve-
zes. A segunda mulher foi a can-
tora e atriz, musa do existencia-
lismo, Juliette Gréco.
A par de sua extraordinária
carreira, Piccoli foi militante
de esquerda, integrando o Mo-
vimento pela Paz e sempre fir-
me contra o Front National, de
extrema-direita. Em 1981, fez
campanha pelo socialista Fran-
çois Mitterrand. Gilles Jacob
editou as memórias de Piccoli e
assina com ele o livro J’ai Vécu
dans Mes Rêves (Vivi nos Meus
Sonhos, em tradução livre). Pic-
coli dizia que conseguiu viver
muito mais do que sonhou.
Não poderia haver mais perfei-
to epitáfio para esse grande do
cinema.
ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS
l]
Mexidão de quarentena
MICHEL PICCOLI H 1925 = 2020
De casa, o cronista recorreu a um
sacolão literário, mas confrades
espertos tiveram a mesma ideia
FIVE FILM
ERIC GAILLARD/AFP – 22/10/1983
‘A Bela da Tarde’. Clássico de 1967 do espanhol Luis Buñuel, ao lado de Catherine Deneuve
Gigante.
Fez mais de
150 filmes