O Estado de São Paulo (2020-05-21)

(Antfer) #1

Aliás,


Martim Vasques da Cunha ]


No dia 24 de abril, a Sociometri-
ca, uma equipe de inteligência
artificial italiana, detectou um
aumento incomum de uma de-
terminada palavra das redes so-
ciais de todo o mundo. Não era
para menos: com o crescimen-
to exponencial da pandemia do
coronavírus, esse vocábulo só
poderia ser um: “medo”.
Mesmo com o seu decrésci-
mo de 62% a 45% nos dez dias
seguintes, ainda assim esse ter-
mo continuou a prosperar nas
mentes dos internautas, compe-
tindo com “tristeza” e “esperan-
ça”. Contudo, a sua persistên-
cia indica também um outro
evento mais perturbador: o de
que talvez já vivemos perma-
nentemente em uma “cultura
do medo” – e da qual não tere-
mos mais como escapar.
Esta é a tese
proposta pelo
sociólogo an-
glo-húngaro
Frank Furedi
em seu inquie-
tante livro
How Fear
Works – Cultu-
re of Fear at the
21st
Century
(Bloomsbury,
R$ 89,67) e
que vem mui-
to a calhar nes-
ta era da co-
vid-19, plena
de isolamento social. Furedi já
lidou com o tema no passado,
mas também possui outros inte-
resses, como a história cultural
da Grande Guerra. Sua grande
obsessão, entretanto, é a cultu-
ra do medo, já dissecada em um
tomo de mesmo título, publica-
do no final da década de 1980, o
que lhe deu certos ares proféti-
cos na imprensa inglesa. De fa-
to, ele viu muita coisa que vá-
rios se recusaram a perceber: a
emergência de uma “teleologia
da perdição”, cuja perspectiva
crescente sufoca o ser humano
não só no modo como exerce a
sua liberdade individual, mas
sobretudo na forma como ele
constrói a sua personalidade,
perdendo a chance de cultivar
as virtudes da coragem e da es-
perança no confronto com os
impasses da vida.
Em How Fear Works , Furedi
expande esse argumento para a
situação contemporânea. Sem
saber que, meses depois, a cultu-
ra do medo iria se impregnar
em todos nós por causa do coro-
navírus, ele afirma que viver em
temor se tornou a única regra
constante, de campanhas políti-
cas às discussões sobre o terro-
rismo islâmico. Sua conclusão é
ainda mais horripilante: se esse
tipo de cultura persistir no mo-
do como educamos a nossa psi-
que, a consequência duradoura


é que ela “promoverá continua-
mente a ideia de que a nossa se-
gurança depende do fato de que
devemos abandonar nossas li-
berdades, e a celebração de um
princípio da precaução nos deu
uma perda de critério sobre nos-
sas chances de assumirmos ris-
cos. A liberdade de realizar ex-
perimentos científicos e de ino-
var geralmente será restringida
pelo imperativo da segurança e
pela preocupação com seus pos-
síveis efeitos colaterais”.
Aqui, a primeira vítima dessa
nova cultura é justamente a li-
berdade de expressão. Nas pala-
vras de Furedi, “essa união en-
tre uma imaginação iliberal e o
medo” mina por dentro o risco
de se discutir quaisquer assun-
tos com precisão, em particular
dentro das universidades, das
redações da grande mídia e no
mercado editorial. Pensar sem
amarras será uma atividade a
ser destruída pelas regras dos
comitês de burocratas que afir-
marão sem hesitar de que a li-
berdade deve
ser abandona-
da em lugar de
“considera-
ções éticas”.
Isso já aconte-
ce em vários
campi univer-
sitários da Eu-
ropa, dos EUA
e do Brasil, on-
de se discu-
tem formas de
censurar dis-
cursos que
possam agre-
dir ou ofender
pessoas mais sensíveis. De acor-
do com esse ponto de vista, a
censura é justificada como uma
forma de terapia pública que
protegeria os desvalidos e os ne-
cessitados em termos psíqui-
cos.
O dilema exposto por Furedi
é um desses temas subterrâ-
neos da história das ideias, sen-
do abordado por clássicos co-
mo Jean Delumeau ( História do
Medo no Ocidente ) até Christop-
her Lasch ( O Eu Mínimo e A Cul-
tura do Narcisismo ), passando
pelo incontornável Thomas
Hobbes e o clássico dos clássi-
cos sobre a cultura do medo: Le-
viatã , publicado em 1651. Infeliz-
mente pouco citado no traba-
lho de Furedi, o tratado sobre a
tensão que há entre segurança e
liberdade individual, escrito
por um homem que testemu-
nhou uma guerra civil e uma pes-
te que quase dizimaram o seu
país, ainda é o principal respon-
sável pela “teleologia da perdi-
ção” na qual estamos mergulha-
dos nessas últimas décadas.
Até hoje, a revolução psicoló-
gica provocada por Hobbes na
sensibilidade ocidental não foi
adequadamente compreendi-
da. Ele não apenas fez uma revi-
ravolta no nosso modo de fazer
política; Hobbes criou uma no-
va forma de encarar o mundo.
Como notou Leo Strauss, se an-

tes a humanidade acreditava
em um Bem Supremo (sum-
mum bonum), no qual a vida ter-
rena tinha um sentido além des-
te “vale de lágrimas”, a partir de
agora o ser humano era obriga-
do a se dirigir somente para um
Mal Supremo (summum ma-
lum), comprovado pela marcha
horripilante das chacinas da
História. Na prática, isso nos
fez romper os laços com qual-
quer possibilidade de transcen-

dência – e mais: incutiu nas nos-
sas mentes o medo da morte.
Essa violência é explicitada
diante dos nossos olhos com as
guerras, os holocaustos e as tor-
turas – todas demonstrações de
uma mecânica do medo que in-
fectou o Ocidente como um to-
do. É claro que uma pandemia
contribui ainda mais para isso.
E é neste ponto que o diagnósti-
co de Furedi começa a mostrar
um certo descolamento das am-

biguidades do mundo real.
Sem dúvida, a “cultura do me-
do” provoca todas essas conse-
quências indesejadas, habil-
mente analisadas pelo sociólo-
go, especialmente a respeito
das nossas liberdades indivi-
duais. Mas essa crítica só passa
a fazer sentido em um mundo
que exista em condições nor-
mais de pressão e temperatura.
Quando nos encontramos no
domínio do Extremistão – aque-

le território do real, antevisto
por Nassim Taleb, onde tudo es-
tá conectado e cada ato nosso
tem um impacto imprevisto –,
essa mesma cultura passa a ser
absolutamente irrelevante pa-
ra a nossa sobrevivência.
É o que aconteceu com a
emergência da peste do corona-
vírus. Infelizmente, depois de-
la, quem passou a ter razão foi
Thomas Hobbes. Trocamos,
sim, a nossa liberdade por um
pouco mais de segurança – e o
que era a educação para enfren-
tar a vida com coragem tornou-
se uma educação que rejeita o
exagero dessa mesma virtude: a
temeridade. Aqui, Furedi dá a
impressão de ser o último estoi-
co iluminista na Terra, uma es-
pécie de John Wayne intelec-
tual que, em vez de sacar uma
arma para se proteger, logo gri-
ta aos quatro ventos o famoso
dito de Immanuel Kant – Sape-
re Aude! (Ousar conhecer!) – e
acredita que tudo ficará bem.
Não, não ficará, especialmente
neste mundo pós-pandemia.
Apesar da sua lucidez, Furedi se
esquece que a verdadeira forta-
leza individual surge não de que-
rer enfrentar o medo de manei-
ra abstrata, mas sim de reconhe-
cer, dentro de si, a nossa fragili-
dade intrínseca e saber que, co-
mo diria um apóstolo de uma
época distante, “quando sou fra-
co, então, é que sou forte”.
Admitir a nossa vulnerabilida-
de diante de um vírus que não
se importa com o nosso saber
ou com a nossa coragem não é
se render à “cultura do medo”.
É nada mais nada menos que ter
a plena noção da nossa insignifi-
cância diante dos mistérios do
mundo – algo que, por um lado,
é maravilhoso e, por outro, é as-
sustador. H.P. Lovecraft, que
entendia muito bem de horror
metafísico, escreveu certa vez
que “a coisa mais misericordio-
sa do mundo é a incapacidade
da mente humana em correla-
cionar todo o seu conteúdo. Vi-
vemos em uma ilha plácida da
ignorância em meio a mares ne-
gros de infinito, e não se pensou
que íamos viajar longe. As ciên-
cias, cada uma progredindo em
direção à parte, até o momento
pouco dano nos causaram; mas
algum dia a junção do conheci-
mento dissociado abrirá pers-
pectivas tão apavorantes da rea-
lidade, e da posição temível que
nela temos, que ou ficaremos
loucos com a revelação ou fugi-
remos da luz mortal na paz e
segurança de uma nova idade
de trevas”. A notável obra de
Frank Furedi deseja justamen-
te impedir que isso aconteça co-
nosco; porém, antes de tudo,
ele precisa impedir que seja tru-
cidado pela mesma mecânica
do medo que diagnosticou en-
tre nós.

]
É AUTOR DO LIVRO ‘A TIRANIA DOS
ESPECIALISTAS’ (CIVILIZAÇÃO BRA-
SILEIRA, 2019).

Sociologia *


SOCIÓLOGO FALA SOBRE


A MECÂNICA DO PAVOR


MEDO


Frank Furedi lança livro num momento em que a palavra


registra um aumento incomum nas redes sociais do mundo


Consequências. Os perigos de perder a chance de cultivar as virtudes da esperança

Isolamento.
Livro de Furedi fala
dos perigos que ele
pode significar

ALEX SILVA/ESTADÃO

Furedi. Palavras proféticas

ALEX SILVA/ESTADÃO

Futuro. Impossível calcular o impacto causado pelo medo

DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

TROCAMOS, SIM, A NOSSA
LIBERDADE POR UM
POUCO MAIS DE
SEGURANÇA

A PRIMEIRA VÍTIMA DESSA
NOVA CULTURA DO MEDO
É A LIBERDADE DE
EXPRESSÃO

BLOOMSDAY

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 21 DE MAIO DE 2020 Especial H3

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