O Estado de São Paulo (2020-05-21)

(Antfer) #1

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H6 Especial QUINTA-FEIRA, 21 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


NAS LIVES


OS DILEMAS DO


Como vencer as limitações sonoras da era dos vídeos?


Chucho Valdés e o mundo instrumental debatem o assunto


Caderno 2


JAZZ


ENTREVISTA


Julio Maria


E o jazz? Essa forma de vida ins-
trumental que habita as delica-
dezas do som mesmo quando a
música se enerva. Como man-
ter a sutileza dos silêncios e das
euforias por meio de um vídeo
no celular? Como produzir al-
go que não perca graves nem
tenha seus arranjos dilacera-
dos pelas limitações de um sis-
tema de som magro? E como o
músico pode seguir tentando
estabelecer o contato de almas
com a pessoa que o ouve sem
vê-lo e sem senti-lo? As mes-
mas lives que têm impulsiona-
do a produção da música canta-
da vale para o jazz? Muitas per-
guntas, algumas respostas e
um consenso: o jazz não pode
desaparecer no tempo do confi-
namento.
O pianista Chucho Valdés,
em um movimento de lives que
começa a despertar no jazz, se-
rá a primeira atração internacio-
nal da série Blue Note Live Ses-
sions, marcada para esta sexta,
22, às 22h, no Blue Note Rio do
YouTube. Chucho, um dos
mais notáveis pianistas de jazz
e de latin jazz de todos os tem-
pos – os cubanos preferem usar
o termo cuban jazz – vai fazer
sua apresentação direto de Ha-
vana para onde embarca de No-
va York nos próximos dias. É
um ato ainda raro entre os ins-
trumentistas de jazz no mun-
do. Chick Corea tem feito lives
quase diariamente em sua pági-
na do Facebook, somente ele e
os três pianos de sua sala, o que
tem criado audiências cada vez
maiores. “Gosto muito de vê-lo
ali em sua sala. Eu entrei na ca-
sa de um músico que não era
nada acessível”, diz a produto-
ra de artistas de música instru-
mental do Brasil, Cibele Bahia.
Chucho concorda que há per-
das sonoras quase irreparáveis
quando o som de um piano che-
ga por meio de um aparelho ce-
lular, por mais avançado que
ele seja, mas que as pessoas ad-
miram o esforço do artista em
chegar até elas. “Penso que as
lives são a forma que temos ho-
je para chegar às pessoas em
quarentena em todo o mundo.
É muito difícil (manter a quali-
dade), mas a linguagem pode
ser tão emotiva que compensa
as falhas. Acredito que o públi-
co aprecia este esforço.” Ele diz
que, das coisas que mais sente
falta neste momento, estão jus-
tamente aquelas que alimen-
tam o jazz ao vivo: “O contato
direto que sempre tivemos, o
beijo, o aperto de mãos. Temos
perdido a comunicação pes-
soal, mas nunca perderemos a
espiritual”.
Seu compatriota Omar Sosa,
expoente do piano cubano jaz-
zístico com bastante ênfase
nas culturas africanas da Ilha,
pensa um pouco diferente com
relação às lives. “Sem o contato
visual, sem sentir a energia dos
músicos a seu lado, sem um pú-
blico à sua frente, o jazz toma
outra dimensão.” Ele compara
as lives às gravações em estú-
dio. “É como fazer uma produ-
ção musical em um estúdio
frio, pode se perder a magia, a
magia de sentir o que os músi-
cos chamam de diálogo, por-
que não estamos tocando mais
juntos. No fundo, penso que (fa-
zer lives) seja um pouco egocên-
trico e creio que, ao final, o que
as pessoas procuram é uma po-
sição midiática. E há muitas
mentiras nisso. Esta é minha
opinião pessoal.”
Marcos Mazzola é o produ-


tor que tem o direito de usar a
marca Montreux Jazz Festival
no Brasil. A segunda edição do
festival ainda não teve data de
remarcação, mas a sede na mar-
ca, na Suíça, já anunciou que,
pela primeira vez desde 1967,
não irá realizar os concertos do
evento que sedia todos os anos
em Montreux. Mazzola estuda
uma saída para ativar ações pe-
la internet de uma forma que
não esfrie o conceito do jazz.
Por ora, seu discurso tem sido

parecido com o de Omar Sosa.
“Na minha cabeça, o jazz é algo
que precisa de muita participa-
ção de público, ainda que seja
feito para 10 ou 30 pessoas. É
preciso estar sobre um palco,
investir em uma interpretação
criativa e não decorada, nem
sempre ensaiada. O jazz se faz
sobre improvisos. Não conhe-
ço, de tudo o que vi na vida,
uma ação de jazz que não seja
nesse ambiente coletivo.” Ain-
da assim, ele diz que tem arqui-

tetado uma maneira de fazer al-
go intermediário para não dei-
xar o ano em que sediaria a se-
gunda edição do Montreux no
Rio em branco. “Eu tenho pen-
sado muito nisso para saber
qual caminho vamos adotar,
mas meu sentimento é o de que
você precisa ter gente ao teu la-
do para que aquilo saia de den-
tro de seu coração.”
O empresário Luiz Calainho,
um dos donos das filiais do
Blue Note no Rio e em São Pau-

lo, diz que, apesar da importân-
cia de se preservar todo o espíri-
to do jazz, algo precisa ser feito.
Ele conta com um patrocina-
dor para colocar de pé ideias co-
mo as lives nacionais e interna-
cionais, a Porto Seguro Car-
tões, que mantém também a ca-
sa de São Paulo. Antes de Chu-
cho, foram feitas lives de Toqui-
nho e do cantor Mark Lambert,
em tributo aos Beatles. “Essas
lives têm sido fundamentais pa-
ra que possamos seguir adian-
te.”
Muitos
músicos têm
se adaptado
ao novo mo-
mento, giran-
do o foco de
suas vidas ar-
tísticas me-
nos para o palco e mais para a
composição e a produção de ál-
buns, enquanto o mundo segue
fechado para desinfecção. Cibe-
le Bahia, a produtora que traba-
lha com músicos como o violo-
nista pernambucano Cainã Ca-
valcante e a pianista Deborah
Levy, diz que testemunha ca-
sos de artistas aumentando
seus fluxos criativos justamen-
te no momento de distancia-
mento. Deborah, por exemplo,
tem feito lives todos os dias, já
lançou dois singles e tem um

álbum programado para sair
nos próximos meses, tudo pro-
duzido nos últimos 60 dias.
A monetização dessas ações
ainda é uma incógnita. Sem em-
presários dispostos a colocar di-
nheiro em lives de música instru-
mental, o meio se reinventa aos
poucos, como se voltasse em
sua história para onde tudo co-
meçou. “O que estamos fazen-
do nesse momento é entregar as
lives gratuitas. Precisamos tes-
tar a qualidade do som antes de
darmos outro passo.” Os ouvin-
tes do jazz costumam ser mais
criteriosos com relação às quali-
dades acústicas. “Por isso acre-
dito que ainda estamos em uma
fase de testes”, diz Cibele.
Algumas pontuais iniciati-
vas começam a testar uma es-
pécie de formato que pode ser
o primeiro a ser adotado quan-
do as primeiras cabeças pude-
rem sair às ruas. Em Brasília,
um grupo de músicos, nem to-
dos das frentes do jazz, se uniu,
com todos os cuidados sanitá-
rios, e colocou de pé um festi-
val chamado Salve o Som. Ele
conta com doações de pessoas
físicas e jurídicas e o apoio de
espaço de dois sindicatos do
Distrito Federal, o Sindilegis e
do Sindjus-DF. Do que conse-
gue com as arrecadações em di-
nheiro, 70% é dividida entre os
artistas participantes do proje-
to, seus produtores e técnicos,
e 30% vai para a compra de ces-
tas básicas e máscaras.
A maioria das casas em São
Paulo ainda está tímida. O Bour-
bon Street, em Moema, um dos
lugares mais tradicionais do
jazz, do blues e da soul music
na cidade, inaugurado por BB
King, segue confinado, sem rea-
ção diante da paralisia do mer-
cado. O exemplo de Brasília po-
de servir como inspiração ao
meio da música instrumental
de outras praças para que se
promova o reencontro do artis-
ta com o espaço de shows. As
casas obsoletas podem, assu-
mindo a segurança sanitária
com a força de um estatuto, rea-
brir seus espaços em fases que
teriam, em um primeiro está-
gio, as pla-
teias vazias,
apenas para o
uso do espaço
de palco, cená-
rio e equipa-
mento de som
privilegiados
e para a insta-
lação das câmeras. Patrocina-
dores seriam atraídos com
mais facilidades. E, em um se-
gundo momento, quando o
tempo dos contágios passar, re-
cebendo público com distân-
cias controladas, reaprenden-
do a viver os grandes concertos
de jazz.

O DESAFIO É MANTER O
CALOR DO JAZZ QUANDO
NÃO SE VÊ O ROSTO
DE SUA PLATEIA

Chucho Valdés, PIANISTA


‘NEM A COVID 10 MIL


ACABA COM O BRASIL’


LUIS FERNANDO VERISSIMO
HOJE, EXCEPCIONALMENTE,
NÃO PUBLICAMOS A COLUNA

LIVES DE JAZZ

CHAD BATKA/NYT-22/10/2015

Chucho.
Sem perder
o contato
espiritual

Música*


O pianista de jazz cubano
Chucho Valdés fala, em entre-
vista ao Estadão , sobre a live
que fará nesta sexta, 22, às


20h30, na página do YouTu-
be do Blue Note Rio, e do mo-
mento de confinamento mun-
dial do jazz.

lComo anda a vida nesses dias
de confinamento?
É uma vida de rotinas muito
grande, mas, no meu caso, es-
tou aproveitando o tempo pa-
ra terminar de compor uma
ópera que havia começado an-
tes da pandemia, tocando mui-
to piano, dando aulas de músi-
ca para a minha família e fa-
zendo exercícios físicos para
não perder a forma.

lMuitas pessoas dizem que o
mundo jamais será o mesmo de-
pois dessa pandemia. Acredita
mesmo nisso?
Acredito que não será o mes-
mo, mas estou seguro de que
será muito melhor, de que se-
remos pessoas melhores.

lParece que não teremos con-
certos ao vivo por muito tempo...
Isso parece bem triste, mas

mantenho a esperança de que
vamos nos ver logo para ter-
mos de volta esse contato.

lCuba não parece ter muitos
casos de contaminações. O siste-
ma de saúde cubano prova sua
força ou os números podem não
ser reais?
É preciso esperar mais tempo
para que possamos chegar a
essa conclusão. Espero que as

cifras estejam certas.

lOs brasileiros foram conheci-
dos no mundo pela música que
fazem, por muitos anos. Isso po-
de estar mudando?
A essência do Brasil, a música
que vocês fazem e sua cultura,
jamais poderão ser destruídas.
Nem a covid-19 nem a covid-
10 mil poderão acabar com
isso. / J.M.

l Chucho Valdés
O pianista cubano, um dos mais
aclamados no mundo, faz sua
primeira live internacional da ca-
sa Blue Note nesta sexta, 22, às
20h30 (exibida pelo YouTube da
casa: youtube.com/bluenoterio)

l Chick Corea
O pianista norte-americano tem
feito aparições diariamente em
sua página de Facebook. Músico
dos mais celebrados mostra
bom humor conversando com a
audiência entre as músicas
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