O Estado de São Paulo (2020-05-22)

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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2020 Metrópole A


GONZALO


VECINA


Após críticas,


equipe assina


nova norma


Mateus Vargas / BRASÍLIA


O estoque de insumos farma-
cêuticos para a produção de
medicamentos à base de clo-
roquina e hidroxicloroquina
caiu diante da pandemia da
covid-19. Mesmo sem eficá-
cia comprovada contra o ví-
rus, as drogas passaram a ser
recomendadas de forma am-
pla a pacientes da doença pe-
lo Ministério da Saúde após
pressão do presidente Jair
Bolsonaro.
Sem somar a demanda pela
covid-19, ainda não estimada,
são consumidos 35 milhões de
comprimidos desses medica-
mentos por semestre no Brasil,


incluindo o Sistema Único de
Saúde (SUS) e a rede privada.
As drogas são indicadas para tra-
tamento de doenças crônicas,
como lúpus e artrite reumatói-
de, além da malária. As informa-
ções constam em documento
enviado na semana passada pe-
la Agência Nacional de Vigilân-
cia Sanitária (Anvisa) ao Minis-
tério da Economia, obtidos pe-
lo Estadão.
Em abril, a agência informou
à equipe econômica que havia
cerca de 8,9 milhões de compri-
midos destas drogas estocados.
Na atualização enviada em
maio, são cerca de 11,6 milhões
de unidades. A soma considera
diferentes apresentações de

medicamentos, como sulfato
de hidroxicloroquina 400 mg e
difosato de cloroquina 150 mg.
Segundo a Anvisa, como as em-
presas aumentaram o estoque
do produto acabado, o insumo
para a fabricação caiu.

Incentivado por Bolsonaro, o
laboratório do Exército produ-
ziu 1,25 milhão de comprimidos
entre os dois informes da Anvi-
sa. A instituição estava com o
estoque zerado até o fim de mar-
ço e sem material para embalar
o medicamento. O Comando
do Exército não informou esti-
mativas de novas entregas.
O Ministério da Saúde prome-
teu reforçar o envio da cloroqui-
na aos Estados e municípios. A
pasta informou na quarta-feira
já ter distribuído 2,93 milhões
de comprimidos apenas para
uso contra a covid-19 – 1,46 mi-
lhão de unidades estão no esto-
que do ministério.
O governo estima que os com-
primidos já entregues servem
para 163,86 mil pacientes da co-
vid-19. A pasta deseja entregar
até agosto mais 6,762 milhões
de unidades, estimadas para cer-
ca de 375,6 mil pessoas.
Principal fornecedora do ma-
terial para a formulação da dro-
ga ao Brasil, a Índia restringiu as
suas exportações de insumo far-
macêutico. O chanceler Ernes-
to Araújo afirmou, pelo Twit-
ter, que o Brasil receberá uma
tonelada desse produto após ne-
gociação com o governo india-
no. Bolsonaro chegou a conver-
sar no começo de abril com o
primeiro-ministro da Índia, Na-
rendra Modi, para receber um
carregamento do insumo.
Para advogados, médicos e

gestores de saúde, o esforço do
governo federal para ampliar a
prescrição da cloroquina, im-
posto por Bolsonaro, ocorre à
margem das regras do SUS. A
criação de protocolo com dire-
trizes de tratamento tem um ri-
to próprio na rede pública, que
considera principalmente a
comprovação da eficácia da dro-
ga e a viabilidade econômica pa-
ra a distribuição do produto.
“Não tem viabilidade. Não
existe medicamento suficiente
para caso leve da covid-19. O Mi-
nistério da Saúde está incenti-
vando uma prática médica que
vai colocar mais gente em ris-
co”, afirmou Daniel Dourado,
médico, advogado sanitarista e
pesquisador da USP.
Segundo o último informe da
Anvisa, a Apsen Farmacêutica
tem o maior estoque do produ-
to no Brasil. São 8,32 milhões de
comprimidos. A Cristália infor-
mou ter 1,3 milhão de unidades
estocadas da droga. Depois do
Exército, o quarto maior esto-
que é da EMS/Germed. São 675
mil comprimidos. A Anvisa in-
formou que a Sanofi-Aventis re-
duziu o estoque de 180 mil para
16 mil comprimidos.
A Fiocruz reduziu o estoque
de 3 milhões para 27 mil compri-
midos. O laboratório público
foi o principal fornecedor do go-
verno para o programa de trata-
mento de malária e, também, pa-
ra pacientes da covid-19.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


João Prata


Os médicos acreditam que a no-
va orientação do Ministério da
Saúde deve atrapalhar um pou-
co o trabalho no enfrentamen-
to da pandemia. Na quarta-fei-
ra, o governo permitiu a prescri-
ção da cloroquina para casos le-
ves da covid-19, mesmo após di-
versos estudos terem mostrado


que o medicamento não é efi-
caz para tratar a doença. “A po-
pulação vai começar a pedir pa-
ra o médico. Caberá a ele expli-
car que não tem eficácia com-
provada e talvez não seja a me-
lhor opção”, disse o presidente
da Associação Paulista de Medi-
cina, José Luiz Gomes da Costa.
Ele esclarece que a pressão
acontece também no tratamen-

to de outras doenças. “Muito
frequentemente o médico é soli-
citado a prescrever tratamento
porque pacientes ouvem falar
que tem efeito miraculoso.”
A médica Lessandra Miche-
lim, diretora da Sociedade Brasi-
leira de Infectologia, também
acha que a orientação do Minis-
tério da Saúde dificulta o traba-
lho dos profissionais da saúde.

“Temos batido muito nessa te-
cla de falar que não há evidên-
cias para casos pouco sintomáti-
cos. A gente vem falando isso há
muitas semanas e agora vem o
protocolo que a gente não con-
corda. A pressão sempre virá na
direção de quem prescreve.”
Ela acredita que não haverá
pressão do governo sobre os
hospitais. “Tem de ficar claro

que não foi nota técnica, não tor-
nou obrigatório. É uma orienta-
ção, que as sociedades médicas
já disseram que não apoiam.”
Antonio Carlos Lopes, dire-
tor acadêmico do Hospital Mili-
tar da Área de São Paulo, discor-
da. “Tem de saber receitar a do-
se adequada. O problema é que
a cloroquina é um medicamen-
to barato e não interessa para a

indústria. Querem queimar pa-
ra lançar um mais caro.”
O presidente da Abrafarma
(Associação Brasileira de Redes
de Farmácias e Drogarias), Ser-
gio Mena Barreto, acredita que
a orientação não mudará a com-
pra da cloroquina. “No início da
pandemia, houve corrida pelo
medicamento e faltou. Mas des-
de que a Anvisa definiu que pre-
cisa de receita controlada freou
a compra. Esse panorama só vai
mudar se os médicos começa-
rem a receitar muito mais.”

N


o dia 20, o Ministério da Saú-
de publicou em seu site:
“Saúde divulga diretrizes pa-
ra tratamento medicamentoso de
pacientes com covid-19”. São dois
documentos – um de instruções vol-
tadas para orientar os médicos e ou-
tro que é um termo de ciência e con-
sentimento para o uso de hidroxiclo-
roquina/cloroquina a ser assinado
pelo paciente. Os dois documentos
trazem informações reveladoras.
No documento técnico denomi-
nado Orientações do Ministério da
Saúde para Tratamento Medicamento-

so Precoce de Pacientes com Diagnóstico
de Covid-19 e que está endereçado aos
médicos, existe um conjunto inicial de
considerandos para embasar a utiliza-
ção dos medicamentos em tela. O se-
gundo considerando é primoroso:
“Considerando que até o momento
não existem evidências científicas ro-
bustas que possibilitem a indicação de
terapia farmacológica específica para
a covid-19”, ou seja, o que se proporá
não deve ser utilizado – está escrito na
proposta terapêutica!
Importante mencionar a fornida lis-
ta de referências bibliográficas com 76

citações. Porém todas as referentes à
droga específica provêm de revistas
desconhecidas e de publicações da in-
ternet. E o documento não tem a assi-
natura de nenhum técnico (inicialmen-
te, o documento foi divulgado sem assina-
turas e cerca de 12 horas após a divulga-
ção, os secretários da pasta subscreveram
o papel, veja abaixo). É inteligível, afinal
os técnicos do ministério foram afasta-
dos e substituídos literalmente por ofi-
ciais. Independentemente da patente,
todos a serviço do capitão.

O segundo documento chamado de
Termo de Ciência e Consentimento é a
chave de ouro. Depois de explicado pe-
lo facultativo que irá dirigir a cura, a
vítima deve assinar dizendo que con-
corda com tudo e inclusive com esta

frase: “Compreendi, portanto, que
não existe garantia de resultados posi-
tivos, e que o medicamento proposto
pode inclusive agravar minha condi-
ção clínica, pois não há estudos de-
monstrando benefícios clínicos”. Per-
cebeu por que vítima?
Concomitantemente, a Associa-
ção de Medicina Intensiva Brasileira,
a Sociedade Brasileira de Infectolo-
gia e a Sociedade Brasileira de Pneu-
mologia e Tisiologia divulgaram ma-
nifesto declarando que a droga não
só não tem efeito na virose, como
pode causar efeitos colaterais graves
em alguns pacientes, entre outros
nos cardiopatas.
A melhor evidência para incorporar
uma droga ao arsenal terapêutico é o
estudo clínico randomizado (sortea-
do ao azar), duplo cego (nem os pacien-
tes nem os médicos que atendem o pa-
ciente sabem quem tomou o remédio e
quem tomou o placebo ou a droga con-
tra a qual o remédio está sendo compa-

rado). A cloroquina e a sua irmã hi-
droxicloroquina foram submetidas
a este tipo de ensaio e, como correta-
mente anuncia o Ministério da Saú-
de em sua nefasta proposta, não fo-
ram aprovadas.
Os brasileiros que adoram brin-
car com tudo já produziram uma
fake news que circula pela internet.
Reproduz com perfeição um resu-
mo publicado na New England rela-
tando um estudo duplo cego rando-
mizado de cloroquina versus tubaí-
na realizado na República Popular
do Congo, que conclui que o braço
que tomou cloroquina não melho-
rou, mas no braço da tubaína os pa-
cientes ficaram felizes com a bebida
e foram melhor hidratados. Portan-
to, vamos tomar tubaína que faz
bem para a saúde (Só que não! Tem
carboidratos em excesso).

]
É MÉDICO SANITARISTA

Cobrado pela falta de assinatu-
ra no documento que mudou a
orientação do Ministério da
Saúde sobre a cloroquina, o mi-
nistro interino, general Eduar-
do Pazuello, ordenou e, cerca
de 12 horas após a divulgação,
todos os secretários da pasta
subscreveram o papel.
As assinaturas foram feitas
entre 20h37 e 23h36 da noite de
quarta-feira, após o Estadão
mostrar que a orientação da pas-
ta não tinha o poder de um pro-
tocolo de atendimento, como
defende o presidente Jair Bolso-
naro. O documento havia sido
divulgado por volta de 9h30, co-
mo orientação. Depois, virou
uma “nota informativa” na ver-
são assinada, que será enviada
para gestores do SUS.
Contrariando recomenda-
ções de entidades científicas e
médicas, a pasta orientou uso
de medicamento à base de cloro-
quina ou hidroxicloroquina, as-
sociadas ao antibiótico azitro-
micina, desde o primeiro dia de
sintomas. Por não ser um proto-
colo, o papel não dita regras de
atendimento no SUS. É apenas
uma orientação, mas marca
uma guinada no discurso do mi-
nistério e tem força política.
O Conselho Nacional de Se-
cretários de Saúde (Conass) di-
vulgou nota contrária à reco-
mendação. A entidade questio-
na: “Por que estamos debaten-
do a cloroquina e não a logística
de distanciamento social? Por
que estamos debatendo a cloro-
quina ao invés de pensar um pla-
no integrado de ampliação da
capacidade de resposta do Mi-
nistério da Saúde para ajudar os
Estados em emergência?”
O Ministério da Saúde tem se-
te secretarias, sendo que três es-
tão com substitutos no coman-
do. Responsável pela Secretaria
de Ciência e Tecnologia (SC-
TIE), área que avalia incorpora-
ção de medicamentos ao SUS, o
médico Antônio de Carvalho
não subscreve o documento.
Ele pediu exoneração e aguarda
a publicação de sua saída no Diá-
rio Oficial da União (DOU).

Críticas. Nesta semana, três
entidades nacionais aprovaram
um documento com diretrizes
para o enfrentamento da pande-
mia no qual recomendam que
as drogas não sejam usadas co-
mo tratamento de rotina. As en-
tidades são a Associação de Me-
dicina Intensiva Brasileira, So-
ciedade Brasileira de Infectolo-
gia e Sociedade Brasileira de
Pneumologia e Tisiologia. /M.V.

lRisco

Novo teste avalia 16 vezes mais amostras. Pág. A12 }


Documentos publicados pelo
Ministério da Saúde trazem
informações reveladoras

Médicos preveem aumento de pedidos pelo medicamento


O drama da cloroquina


E-MAIL: [email protected]

GERARD JULIEN / AFP

Estoque para a


produção de


cloroquina diminui


“Não há sequer
medicamento suficiente
para caso leve da covid-19. O
Ministério está incentivando
uma prática que vai colocar
mais gente em risco.”
Daniel Dourado
MÉDICO SANITARISTA
E PESQUISADOR DA USP

Governo pretende entregar até agosto 6,7 milhões de comprimidos;


principal fornecedora de insumos, a Índia restringiu exportações


Consumo. Governo disse já ter distribuído 2,93 milhões de comprimidos para uso contra a covid-19; droga é indicada para doenças como lúpus e artrite

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