O Estado de São Paulo (2020-05-22)

(Antfer) #1

Júlia Corrêa


Nos últimos tempos, mesmo
quando se busca o autocontrole,
são recorrentes as alterações de
ânimo e a intensificação de ansie-
dades por causa da pandemia.
Não é de se estranhar, portanto,
que a própria relação das pes-
soas com a fé esteja sendo afeta-
da. Em alguns casos, os senti-
mentos de vulnerabilidade e de
fragilidade diante da pandemia
podem levar os indivíduos a ques-
tionar as suas convicções. Em ou-
tros, podem fazê-los buscar
meios para fortalecê-las.
Ao longo da quarentena, a ad-
vogada Gabriela Sammarone, de
24 anos, viu a sua fé oscilar entre
esses dois polos. Ela se sentiu es-
pecialmente abalada quando um
parente morreu (por outra causa
que não a covid-19) e, devido às
atuais restrições, não pôde ir ao
velório. “Sou uma pessoa ansio-
sa, mas de muita fé. Acredito em
várias energias. Entendo que
Deus está dentro de mim e me
conhece melhor do que nin-
guém, mas fi-
quei me ques-
tionando por
que aquilo ti-
nha que ocor-
rer justo neste
momento.”
Passado o
período de
maior tristeza, Gabriela optou
por “preservar a paz” que a sua
crença sempre lhe proporcio-
nou. “Sei que, se eu ficar procu-
rando todas as respostas, a mi-
nha fé vai ser abalada, mas eu não
quero perdê-la”, diz. “Em tese, a
gente já acredita em um Deus in-
visível, intangível; agora, esta-
mos lidando com a força de um
vírus invisível. Compreender tu-
do isso exige muito esforço.”
É nesse sentido que, para a psi-
canalista Danit Zeava Falbel Pon-
dé, essa “mudança invasiva que
interrompe a continuidade de
nosso cotidiano” pode implicar
uma reação “de ordem passiva
ou criativa”. Em sua avaliação, o
coronavírus não tem um sentido
por si próprio; são os seres huma-
nos que têm a capacidade de do-
tá-lo de significados, e isso se ori-
gina “diretamente da nossa capa-
cidade de construir um mundo
interno”. Ela explica que essa ha-
bilidade envolve ainda uma ou-
tra: a de saber conviver com as
dúvidas que surgem em momen-
tos incertos.
Foi para buscar um sentido pa-
ra o que tem
ocorrido que o
casal Maria Ali-
ce e Eduardo
Shahid, de 63 e
66 anos, pas-
sou a acompa-
nhar cultos reli-
giosos da Igre-
ja Batista. Católicos não pratican-
tes, eles frequentam, há sete
anos, um grupo de estudos bíbli-
cos, conduzido pelo pastor Pau-
lo Eduardo Vieira, da Primeira
Igreja Batista de São Paulo, que
continua a ocorrer semanalmen-
te, mas agora pela internet.
“Antes eu tentava ler a Bíblia,
mas não conseguia aprofundar
como eu gostaria. Por apreciar o
trabalho do pastor Paulo, que
nos faz entender os versículos
com maior facilidade, passamos
a acompanhar algumas cerimô-
nias de sua igreja. Agora, diante
da ansiedade que a pandemia
traz, assistimos aos cultos pelo
YouTube, em busca de serenida-
de e esperança neste momento”,
explica Maria Alice, isolada com
o marido desde 23 de março, em
Ubatuba. “Há diferenças em rela-
ção ao catolicismo, mas os funda-
mentos são os mesmos, e o pas-
tor transmite segurança e pro-
priedade naquilo que fala, sem re-
correr a uma visão apocalíptica.
Isso tem fortalecido minha espi-
ritualidade”, relata Eduardo.


Necessidade de amparo. De
acordo com o mestre em ciên-
cias da religião e doutor em filo-
sofia Andrei Venturini Martins,
as pandemias “sempre foram
um momento de um índice mui-
to alto de conversões”. Em al-
guns períodos, isso se devia às
próprias configurações sociais,
como na Idade Média, quando
não existia a noção científica so-
bre micro-organismos, e as reli-
giões exerciam um papel funda-
mental, com padres e sacerdotes
tidos como grandes arautos.
Mas as razões para os indiví-
duos buscarem o amparo em cer-
tas crenças podem ser mais pro-
fundas, e Martins usa a imagem
proposta por um conhecido filó-
sofo alemão do século 19 para ex-
plicá-las: “Schopenhauer tem
uma metáfora para isso: imagine
que você é um barquinho no mar
revolto. A tempestade joga você
no fundo, te machuca, e você não
sabe de onde vem aquilo. Num
dado momento, percebe que
aquela fúria estava dentro de vo-
cê também, mas se você se con-
centrar nisso,
entrará em de-
sespero. As-
sim, é necessá-
rio um desvio,
que, para Scho-
penhauer, se-
ria a necessida-
de da ascese fi-
losófica e artística. Mas ele abre
uma brecha para se pensar na reli-
gião, sobre como ela pode nos
ajudar a nos desviar desse aspec-
to desesperador do mundo”.
Considerando tal necessida-
de, Danit Zeava Falbel Pondé ain-
da ressalta que a fé de alguns po-
de se voltar para a ciência ou as
ideologias. “O nosso erro foi acre-
ditar na idade da razão, que o ho-
mem moderno daria conta de tu-
do e que não haveria nada que
nos abalasse por termos a ciên-
cia como escudo”, avalia. A visão
de Martins é similar: “Diante da
força voraz da pandemia, o am-
biente científico que se inicia no
século 19 e ganha corpo nos sécu-
los 20 e 21 não vai desaparecer,
mas seu discurso vai ter obstácu-
los. John Gray (filósofo britânico)
fala que um dos erros da humani-
dade foi acreditar na autossufi-
ciência dos humanos, como se o
avanço da ciência estivesse des-
vinculado da natureza.”
Como explica o psicólogo Feli-
pe Pimentel, que atualmente se
dedica ao tema do luto, o exercí-
cio de uma religião é uma das “úl-
timas noções
de participa-
ção comunitá-
ria na qual a co-
munidade em
si é o que dá
sentido à práti-
ca” – uma dife-
rença funda-
mental ao compararmos com ou-
tros ambientes que deixamos de
frequentar neste momento. Ao
longo deste período de isolamen-
to social, por exemplo, importan-
tes datas religiosas tiveram as
suas celebrações afetadas, como
a Páscoa cristã e Pessach judaica.
Na visão de Andrei Venturini
Martins, com a transposição de
alguns rituais para o ambiente
virtual, uma tendência pode se
acentuar: trata-se do que ele cha-
ma de “religiões de gaveta”. Com
o acesso a informações sobre di-
ferentes práticas, as pessoas po-
derão desenvolver uma relação
menos institucionalizada com a
fé, baseada no cruzamento dos
valores que lhes fazem sentido.
É claro que a transmissão de
cerimônias pela internet pode
atenuar a falta que os encontros
fazem aos fiéis. Mas, como co-
menta Pimentel, quem frequen-
ta celebrações não vai apenas pa-
ra ouvir, mas para receber passes
e se confessar, entre outras práti-
cas que geram sensação de prote-
ção e de segurança.


NA


OLHAR COM FÉ

“Na tradição judaica, esta-
mos lendo o livro de Levítico


  • nenhum outro texto da Bí-
    blia lida tão diretamente com
    a fragilidade da vida no que
    pode parecer um mundo indi-
    ferente. Recebo muitas con-
    sultas, as pessoas estão caren-
    tes, querem ser ouvidas. Ho-
    je, mais do que nunca, preci-
    samos ouvir com o coração.”
    Adrián Gottfried, Rabino
    Líder da Comunidade Shalom


“Nossa comunidade está rea-
firmando sua vocação e mis-
são: amar a Deus e ao próxi-
mo. A atenção com famílias
carentes, o suporte aos enlu-
tados e o cuidado com mora-
dores de rua são práticas con-
tínuas em 120 anos de atua-
ção. Talvez o diferencial des-
ta crise seja o advento das
plataformas tecnológicas.
Negacionismo científico e
fanatismo político não contri-
buem com a sociedade.”
Davi Lago, Capelão da Primei-
ra Igreja Batista de São Paulo

“O isolamento social não de-
ve ser impedimento para pre-
ces, orações, manifestações,
jejuns. A pandemia não é um
castigo – conforme o ensina-
mento de Buda, tudo que
existe depende de causas,
condições e efeitos, numa
trama incrível. O momento é
para refletirmos, observar-
mos com clareza como pode-
mos modificar nosso compor-
tamento e relacionamentos
para que nos curemos e mini-
mizemos sofrimentos.”
Monja Coen, Missionária da
tradição japonesa Soto Zen

“Tenho notado que as pes-
soas estão buscando uma
fonte de esperança e uma
palavra de conforto. O meu
conselho para esse momen-
to de incerteza é para que
tenhamos calma e esperan-
ça. Temos de cuidar do
próximo e de nós.”
Padre Reginaldo Manzotti,
Pároco do Santuário Nossa Se-
nhora de Guadalupe

“O momento mostra que a
religião não deve ser pratica-
da somente no templo. Deus
não está confinado dentro da
mesquita, as pessoas podem
transformar sua casa num
templo. As confraternizações
têm um fator social, de apoio,
e o ser humano precisa disso
para a sua saúde mental. Po-
rém, preservar a vida é priori-
dade. Os muçulmanos estão
no mês do Ramadã, mas o
isolamento não deve afetar a
fé. Todo dia, faço preces, sú-
plicas pelos profissionais que
se arriscam e pedidos para
Deus que cure as doenças.”
Sheikh Jihad Hammadeh,
Vice-presidente da União Nacio-
nal das Entidades Islâmicas
(UNI)

“As religiões de matriz africa-
na e indígena têm tido dificul-
dades, pois o atendimento
depende de um contato pre-
sencial, em que se procura
entender aquela energia espe-
cífica. Por meio de aplicativos,
os sacerdotes têm dado orien-
tações. Quando identificam
que a pessoa precisa de atendi-
mento urgente, a recebem em
hora marcada, no que temos
chamado de pronto-socorro
espiritual, seguindo recomen-
dações sanitárias.”
Pai Guimarães, diretor-presi-
dente da Associação brasileira
dos Templos de Umbanda e
Candomblé (Abratu)

EM TEMPOS DE


ISOLAMENTO


QUARENTENA


‘AS PANDEMIAS SEMPRE
FORAM UM MOMENTO DE
ÍNDICES ALTOS DE
CONVERSÃO’

‘O NOSSO ERRO FOI
ACHAR QUE NADA NOS
ABALARIA POR TERMOS A
CIÊNCIA COMO ESCUDO’

Situações-limite podem ampliar –


ou comprometer – a religiosidade


Caderno 2


Reese Witherspoon vive outra mãe PÁG. H2


Crenças. Na Idade Média,
padres e sacerdotes
davam as respostas na
falta da ciência

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HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

%HermesFileInfo:H-1:20200522:H1 SEXTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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