O Estado de São Paulo (2020-05-22)

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H8 Especial SEXTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Ignácio de Loyola Brandão


ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

l]


Regina Duarte, esperamos que honre
a memória de nomes como Paulo Emí-
lio Salles Gomes, Almeida Salles, Ru-
dá de Andrade, Caio Scheiby, Antonio
Candido, Décio de Almeida Prado,
Rubem Biáfora e B.J Duarte, pionei-
ros na fundação da Cinemateca

E


sta é a crônica mais delirante e
real que escrevi nestes meus
27 anos neste jornal. Se eu mor-
rer de covid-19, saibam que fui assassi-
nado. Sei que posso ser morto apesar
dos cuidados que tomo. Estou há 50
dias encerrado em casa. Não desço se-
quer para atender motoboys que tra-
zem medicamentos, compras de su-
permercados ou refeições. Gastei hec-
tolitros de álcool gel, cheguei ao máxi-
mo de, após receber uma ligação, dar
um banho no telefone com medo de
ser contaminado pelo som. Quando
vejo noticiário, desligo se o presiden-
te começa a falar, enraivecido, espa-
lhando perdigotos, tossindo, espirran-

do, dando a mão, insensível, abusado.
Tenho medo de ser infectado. Aqueles
olhos claros que poderiam ser amorosos
e cordiais nos fuzilam com chispas de
ódio. Como deve sofrer quem vive assim
na defensiva. Porque ele é pura defensi-
va o tempo todo. Segundo os sábios, não
podemos olhar nos olhos de uma pessoa
que odeia tudo, o mundo, a vida, porque
podemos trazer para dentro de nós o que
ela tem de maligno. Há o perigo de nos
tornarmos como ela, malvada, perversa.
Dona Ursulina, senhora sábia, que cozi-
nhava como poucos, avó de um primo
querido, diante de gente ruim costuma-
va dizer: “Isso não é gente, isso é o demô-
nio”. E esse presidente se diz religioso,
vai a cultos, agrada a fiéis, bispos, pasto-
res, o que for. Quem ele quer enganar?
Mas algum deus está de olho. Os deu-
ses existem, cada um sob uma forma, es-
pírito, sopro divino. Seja o meu Deus, se-
ja Maomé, Jeová, Alá, o Sol, Shiva, Buda,
Brahma, Jina, o conquistador, ou Zeus,
Júpiter, ou quantos mais houve e os no-

vos, que andam por aí. Bolsonaro me lem-
bra um deus dos maoris, na Nova Zelân-
dia, de nome Whiro, o maléfico, senhor
das partes mais escuras da vida. Lendo
sobre culturas primitivas, descobri seme-
lhanças interessantes. Diz Joan Rule em
Os Foes da Papua-Nova Guiné (As Reli-
giões do Mundo) que, naquele país, na tri-
bo dos foes, “os homens com uma rela-

ção com as coisas maléficas e que sabiam
os encantamentos devidos eram favore-
cidos e não seriam incomodados. Porém
os que provocassem a ira do espírito fica-
riam com as pernas ou o estômago incha-
dos”. É ou não é uma definição justa para
bolsonarismo, milícias, o gabinete do
ódio, redes de fake news, destruição de
personalidades, ataques à natureza?
Rule nos revela outra crença que é me-

táfora perfeita para nossos tempos. Cita
a existência dos “Soros, espíritos erran-
tes que andam aqui e acolá, sempre à
espreita para prejudicar os humanos”.
Esses espíritos estão encarnados naque-
les que fazem carreatas contra isola-
mento, pregam a hidroxicloroquina (ne-
nhum jornal perguntou quem está lu-
crando com essa história), o fim do Su-
premo, a volta da ditadura, da tortura,
do AI-5, do fechamento do Congresso.
Porque essa turma é uma seita com seu
deus Bolsonaro, perto de quem os Soros
e os Whiros são cândidos e celestiais.
Sabemos que todas investigações mor-
rerão nas mãos do procurador Aras.
Não nos iludamos e esta minha crônica
é propositalmente desestruturada, algo
caótica, porque retrata tempos que vive-
mos, não sabemos onde ir, o que fazer,
pensar, para onde ir, de quem esperar.
O que fazer muitos sabem e têm nas
mãos os poderes. Mas não fazem. Não
querem. O que aconteceu, gente? Esta-
mos anestesiados? Hipnotizados?

Amortecidos? Deprimidos? Ou te-
mos fumado muito, mas muito, mui-
to crack? Para finalizar, quero dizer
que, se eu morrer de covid-19, sai-
bam que fui assassinado. Não preci-
sam chamar a PF, nem Hercule Poi-
rot, o inspetor Maigret, Phillip Mar-
lowe, Sherlock Holmes, Perry Ma-
son, Arsène Lupin, Nero Wolfe, Kay
Scarpetta, Miss Marple, Charlie
Chan (ah, os seriados!), inspetor Me-
lo Pimenta (Jô Soares), Ed Mort (Ve-
rissimo), Bellini (Tony Bellotto),
Mandrake, (Rubem Fonseca), dou-
tor Leite (Luis Lopes Coelho), delega-
do Spinosa (Garcia-Roza). Tenho
uma estante cheia deles aqui em casa.
Não, não é necessário gastar cére-
bros em investigações. Se bem que
agora nas séries o crime é descober-
to em laboratório, com microscó-
pios, dextetropinas, anfetaminas, in-
sulinas, DNAs e produtos químicos
que os atores decoram sem ter a míni-
ma ideia do que se trata. Saibam, ca-
ros leitores, que, se eu morrer, fui as-
sassinado pelo presidente com sua
interferência na Saúde. Eu e milha-
res, uma vez que já estamos perto
dos 20 mil mortos.

DAS ARCADAS


PARA AS AULAS


A tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco


foi obrigada a se modernizar em razão da pandemia


Renata Cafardo


A tradicional Faculdade de Di-
reito do Largo São Francisco
modernizou-se quase que à for-
ça por causa da pandemia do co-
ronavírus. Professores que ensi-
nam há mais de 30 anos, com
microfone na mão, em grandes
salas cobertas de madeira do
chão ao teto, foram para trás
dos computadores. Não sem pe-
nar com as peculiaridades do
mundo virtual, em que se lecio-
na para quadradinhos na tela.
Alunos se dizem até surpresos
com a rapidez que o processo
de educação online tomou con-
ta da instituição, mas sentem
falta do ambiente da mais con-
ceituada faculdade de Direito
do País.
Passados dois meses do início
da quarentena em São Paulo, cer-
ca de 90% dos cerca de 100 pro-
fessores da São Francisco estão
fazendo atividades remotas.
Poucos resistem, com o argu-
mento de precarização do ensi-
no. Na pós-graduação, foram
realizadas virtualmente 124 ban-
cas de mestrado ou doutorado
nesse período. Deu tão certo
que já se pensa em manter a dis-
tância a participação de exami-
nadores de fora de São Paulo, até
depois da quarentena. “Com
quase 200 anos, estamos sendo
obrigados a acelerar um proces-
so que é inevitável e irreversí-
vel”, diz o diretor da faculdade,
Floriano de Azevedo Marques.
A São Francisco foi fundada
em 1827 por Dom Pedro I como
uma das primeiras instituições
de ensino superior do País. Só de-
pois foi anexada à Universidade
de São Paulo (USP), que surgiu
em 1934. Pelas “Arcadas”, como
seu espaço no centro da capital
paulista ficou conhecido, passa-
ram presidentes da República e
figuras como José de Alencar,
Rui Barbosa, Joaquim Nabuco.
Neste mês, alunos fizeram um
abaixo-assinado pedindo aulas a
distância para o pequeno grupo
de professores que não aceita a
modalidade. Por meio de nota,
eles responderam que era impos-
sível “a conversão, na metade do
caminho e em um contexto de
pandemia, de um curso pensado
para ser presencial em um curso
virtual”. No curso de Direito da
Universidade Estadual Paulista
(Unesp) apenas 20% das aulas
foram autorizadas pela congre-
gação para serem dadas online.
O argumento é a qualidade do
ensino e a desigualdade. A São
Francisco comprou e deu aos
alunos carentes 300 chips de in-
ternet.
“O mundo jurídico tem resis-
tências naturais ao que é novo”,
diz o desembargador do Tribu-
nal Regional Federal e professor
da faculdade Newton De Lucca.
Aos 72 anos, ele diz que não com-
partilha dessa ideia e pediu aju-
da à assistente para continuar le-
cionando. Ela o apresentou para
o Google Meets e explicou que
não poderia falar muito perto da
câmera do computador. “Pe-
guei um livro de 1200 páginas,
um tijolão, e coloquei embaixo
do computador. Parece que está
dando certo”, conta De Lucca,


que dá aulas vestindo abrigo es-
portivo. São 70 alunos semanal-
mente que assistem ao profes-
sor de Campos de Jordão, onde
está isolado. “A parte boa é que
não preciso colocar terno e gra-
vata, tradição na faculdade”,
brinca. “Mas claro que não é a
mesma coisa. Minha maneira de
lecionar varia bastante com o
grau de interesse que vejo na pla-

teia. Quando estão interessa-
dos, você percebe pelos olhi-
nhos deles.”
Em geral, os estudantes não li-
gam as câmeras e microfones du-
rante as aulas virtuais. “Se a gen-
te fica só na aula expositiva, sem
interagir, corre o risco de ter alu-
nos fantasmas”, já percebeu a
professora Mara Regina de Oli-
veira, de 56 anos, que dá Introdu-

ção ao Estudo do Direito para o
primeiro ano. Ela conta que ti-
nha uma ideia negativa da educa-
ção a distância e que achou, no
início, que os alunos não esta-
vam aprendendo nada.
Mara resolveu então gravar e
pôr no YouTube algumas aulas
teóricas e deixar a interação ao
vivo para discussões. A profes-
sora, no entanto, ficou preocu-

pada quando descobriu só de-
pois da segunda aula que as gra-
vações desses momentos ao vi-
vo estavam ficando com um es-
tudante e não com ela. “Confes-
so que nunca tinha visto esse
tipo de tecnologia.” Um funcio-
nário da faculdade a ajudou a
ter a posse das suas aulas.
“Nunca imaginei que fosse
dar aulas sem ver o rosto dos
meus alunos”, lamenta o profes-
sor João Alberto Del Nero, de
67 anos, mais de 20 na São Fran-
cisco. Ele brinca que é da “tur-
ma do pergaminho” e que pas-
sou duas semanas aprendendo
a mexer no Power Point e em
outros programas para ajudar
em aulas remotas. Del Nero de-
cidiu, então, que iria gravar suas
aulas, com slides explicativos, e
mandar aos 180 alunos que tem
neste semestre, em duas disci-
plinas. “Eu não me arrisco a fa-
zer aulas ao vivo, tenho medo
de me perder com 60 quadri-
nhos na minha frente, confesso
minha incapacidade.”
Agora Del Nero e Mara estão
às voltas com a definição de co-
mo farão a avaliação, obrigató-
ria na faculdade no fim do se-
mestre. “Eles têm acesso a tu-
do, a colegas, inclusive, pelo
WhatsApp. Se der uma prova
básica vão copiar uns dos ou-
tros, uma difícil, ninguém con-
segue”, diz Mara. A faculdade
ainda está montando tutoriais
com as opções de metodologia
e os critérios para as provas.
O professor de Direito Finan-
ceiro Fernando Facury Scaff,
há 30 anos lecionando, encarou
com facilidade a prova online
que já fez no meio do curso.
“Passei um problema para eles
resolverem, podiam fazer a con-
sulta que quiserem, Google, li-
vros, o importante é argumenta-
ção, as escolhas”, diz. “As per-
guntas feitas nos chats mos-
tram que eles estão querendo
aprender. A faculdade está ati-
va, está funcionando.”

Esta minha crônica é
propositalmente caótica, porque
retrata tempos que vivemos

‘Antes as coisas


eram lentas,


burocráticas’


ONLINE

Se eu morrer, saibam quem me matou


FELIPE RAU/ESTADÃO

ARQUIVO PESSOAL

Frustração. Dois anos para entrar e Jade ficou sem conhecer professores e colegas

A caloura Jade Souza, de 20
anos, está frustrada. Estudou du-
rante dois anos para passar na
Fuvest e se tornar aluna da Fa-
culdade de Direito do Largo São
Francisco. “Não cheguei nem a
decorar o caminho para lá, não
conheço a maioria dos meus co-
legas, professores, veteranos”,
conta. Jade é de Guaratinguetá e
havia se mudado para São Paulo
para estudar Direito. Com a qua-
rentena, está de volta para cháca-
ra dos pais no interior do Esta-
do. “Difícil até me sentir parte
da faculdade, daquele prédio im-
ponente. Tive duas semanas e
meia de aulas e acabou.”
A aluna teve ainda dificulda-
des com a internet para fazer as
atividades online porque onde
mora o sinal é instável. “Só na
semana passada consegui ver a
imagem da aula e usar o micro-
fone.” Sua frustração se esten-
de aos rituais pelos quais pas-
sam os calouros, ela menciona
com tristeza as festas de recep-
ção que não aconteceram e a
vontade de participar de proje-
tos de extensão.
Há meses sem sair de casa, Ja-
de ainda se sente abalada psico-
logicamente com a pandemia e
acha que não consegue render
tanto ao estudar para o novo
curso, sozinha em casa. Está
preocupada como serão as pro-
vas do fim do semestre. “Só fala-
mos com os professores por
chat, eles não sabem nossos no-
mes. E acho que isso não vai me-
lhorar tão cedo, sinto como um
ano perdido.”
Sua colega do terceiro ano
Giovana Bosso, de 21 anos, diz
ter se adaptado bem, apesar de
sentir falta dos amigos da facul-
dade. Ela acha que ganhou tem-
po em não precisar ir até o pré-
dio da São Francisco todos os
dias e elogia o esforço dos pro-
fessores, principalmente dos
mais antigos, em dar aulas onli-
ne. Mas também acha que a
quantidade de atividades está
além do que era dado presen-
cialmente. “Os professores es-
tão preocupados que não esteja-
mos rendendo em casa e pas-
sam o triplo de coisas, trabalho,
atividades.”
“Acho que tem muita gente
que entra na aula, coloca o fone
e volta a dormir”, diz o aluno do
3º ano Marcos Leal de Moraes
Santana, de 20 anos. Para ele,
são muitas as distrações en-
quanto acompanha aulas de ca-
sa. “É só abrir uma abinha ao
lado para ver outro site e conti-
nuar ouvindo o professor”, con-
corda Giovana.
Para eles, no entanto, a facul-
dade vai se modernizar após a
pandemia. “As coisas lá são mui-
to lentas, burocráticas, mas ago-
ra os professores estão explo-
rando as plataformas, pedindo
para entregar trabalhos eletro-
nicamente, algo que não era usa-
do”, diz Marcos. “Essas coisas
não vão ser esquecidas.” / R.C.

Atitude. Aluna Giovana
Bosso elogia professores
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