O Estado de São Paulo (2020-05-23)

(Antfer) #1

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H6 Especial SÁBADO, 23 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


DANIEL DEFOE E A


Sobre o nosso infortúnio atual, ele escreveu não um, mas


dois livros: ‘Diário do Ano da Peste’ e ‘Robinson Crusoe’


DOENÇA


Mario Vargas Llosa


Sem intervalo


Luiz Carlos Merten


São filmes diferentes entre
eles, mas três atrações deste sá-
bado, 23, no Canal Brasil, levan-
tam importantes questões de
gênero. As mulheres estão no
centro de Baronesa, de Juliana
Antunes, às 11h55; Central do


Brasil, de Walter Salles, às
14h40; e Eu Tu Eles, de Andru-
cha Waddington, às 23h10.
Baronesa desenvolve-se mui-
to em torno da conversa de

duas amigas. Fazem contas, por-
que uma quer construir sua ca-
sa em outra comunidade. Fa-
lam também de violência coti-
diana, de filhos, de companhei-
ros. Documentário nas bordas,
tem um desfecho ficcional for-
te. Venceu a Mostra Aurora, de
Tiradentes.
Central do Brasil levou Fer-
nanda Montenegro para o Os-
car. Ela faz Dora, que escreve,
para analfabetos, cartas que
não coloca no Correio. A rela-
ção com Josué, o magnífico Vini-
cius Oliveira, a transforma. Do-
ra descobre a ética.
Se o sertanejo é um forte, o

que dizer das mulheres do
sertão? Darlene/Regina Ca-
sé tem três maridos em Eu
Tu Eles. A fotografia de Bre-
no Silveira, a trilha de Gil-
berto Gil. Esperando na Jane-
la: “Por isso eu vou na casa
dela, ai, ai / Falar do meu
amor pra ela, vai...”.
Andrucha foi criticado
por cosmetizar a fome. Sen-
satamente explicou que sua
história é real, mas só se fi-
lia à vertente do Cinema No-
vo por um outro viés. Cenas
de um (triplo) casamento.
Todo mundo junto. A fome
é de amor.

Duplo de Sofia Coppola
As Virgens Suicidas/The Virgin Suicides, de
1999, com Kirsten Dunst e Josh Hartnett.
Encontros e Desencontros/Lost in Transla-
tion, de 2003, com Scarlett Johansson e Bill
Murray.

Luiz Carlos Merten

Toda a obra de Sofia Coppola
desenvolve-se em torno ao te-
ma das jovens mulheres solitá-
rias. Pode ser até a rainha (Ma-
rie Antoinette). As garotas de
boa família parecem ter tudo.
Mas, então, por que se suici-
dam? Scarlett Johansson inda-
ga-se sobre quem é, numa cultu-
ra estranha, o Japão. Não são
perguntas fáceis. Sofia ganhou
o Oscar de roteiro pelo segun-
do. Escreve e filma bem.
TEL. CULT, A PARTIR DAS 20H15.

N


inguém ficou surpreso, na-
quele subúrbio de Washing-
ton DC, quando chegaram
de mudança Elizabeth e Philip Jen-
nings, que pareciam a própria essên-
cia dos casais americanos. Eles ti-
nham dois filhos: Paige, a mais ve-
lha, que ajudava o pastor batista no
bairro, e Henry, o mais novo, bom
na matemática e nos esportes, que
disputava bolsas de estudos nas me-
lhores faculdades. Os Jennings ga-
nhavam a vida com uma agência de
viagens e, por coincidência, ficaram
muito amigos de seu vizinho, Stan
Beeman, agente do FBI e especialis-
ta em contrainteligência, que tam-
bém se mudara para o bairro.
A série que conta essa história se
chama The Americans. Foi concebi-
da por Joe Weisberg e – ainda que,
como de costume nessas narrativas
para as telas, tenha diferentes pro-
dutores e diretores – está muito aci-
ma das idiotices de entretenimento
que geralmente são as histórias em
série, alcançando um nível intelec-
tual que parece ter contribuído para
seu sucesso limitado.
Precisamente por esse motivo, ou-
so recomendá-la efusivamente
àqueles que, nestes dias confina-
dos, cansaram-se de ler e desejam
passar o tempo entretidos com um
bom programa de televisão. Ao con-
trário das aparências, Elizabeth e
Philip Jennings não são america-
nos, mas russos, e nem mesmo são
casados, embora, com o passar do
tempo, contraiam um casamento
russo-ortodoxo, na própria

Washington DC. Eles foram doutrina-
dos desde a infância pela KGB soviéti-
ca para servir nas terras do principal
inimigo da URSS, os Estados Unidos.
Na verdade, viveram muito bem nos
anos em que moraram em Washing-
ton, sem serem detectados pelas agên-
cias de espionagem norte-americanas,
transmitindo informações e assassi-
nando os inimigos (concretos ou in-
ventados) do império soviético. Esta-
mos nos anos Ronald Reagan, quando
o presidente, por meio das chamadas
“guerras nas estrelas” – que os críticos
qualificavam como absurdas –, pressio-
nava a URSS para que, escancarando a
ruína de sua economia socializada, ten-
tasse competir com os Estados Unidos
naquela fantasia de foguetes espaciais
que acabou de afundá-la e precipitou a
crise mais profunda da qual emergiria
Gorbachev e, mais tarde, o desapareci-
mento do comunismo soviético.
Essa crise provocou imensos distúr-
bios na própria URSS. Um setor reacio-
nário queria liquidar Gorbachev e os
partidários da abertura e da democrati-
zação do comunismo, os quais faziam
concessões que permitiriam que um
acordo com o Ocidente acabasse pro-
gressivamente com as armas nuclea-
res. A KGB parece ter se voltado para o
extremo do extremo, a julgar pela divi-
são que a abertura produziu na família
Jennings, na qual o marido, Philip, can-
sado de se sentir manipulado e cansa-
do também daquela vida dupla e de tan-
to assassinato, distancia-se de sua pro-
fissão secreta, enquanto Elizabeth con-
tinua a exercê-la com o mesmo entu-
siasmo sangrento com o qual começa-

ra. O próprio Stan Beeman, que então
começa um relacionamento secreto
com uma espiã russa, parece confuso
com o que está acontecendo na URSS
naquele momento decisivo.
The Americans narra a vida dupla do
casal e sua estreita amizade com o
agente do FBI, feita de viagens ao cam-
po e mesas de pizzas e hambúrgueres
compartilhadas e bem regadas pela
aguada cerveja americana aos domin-
gos e feriados. Os filhos dos Jennings,
especialmente, têm muito carinho por

Stan, o que parece recíproco, e passam
muito tempo na casa do vizinho. Os
espiões, por sua vez, não são, de modo
algum, aqueles vertedouros de sangue
com diferentes graus de animalidade
aos quais o cinema nos acostumou,
mas seres inteligentes e quase intelec-
tuais, pois se interessam pelas proje-
ções culturais, políticas e morais de
seu ofício e leem jornais – toda vez que
Elizabeth aparece, está folheando o
Washington Post ou o New York Times.
Suas conversas e solilóquios sempre
têm a ver com a projeção internacional
do que fazem. Assim, o espectador se-
gue de perto as dúvidas morais que a
arriscada profissão suscita em Philip –
e, pouco depois, também em Elizabe-
th. Eles foram educados na crença de
que a Pátria (em letras maiúscula) de-

veria se defender contra um inimigo
que queria destruir a URSS e o comu-
nismo. Mas agora, com tudo o que
acontece, eles duvidam de que isto seja
assim tão claro e começam a se pergun-
tar se não se trata de uma manobra
retórica para continuar exercendo um
poder incomum para aquela camarilha
que enche a boca falando sobre o socia-
lismo, sociedade sem classes e uma
“verdadeira” liberdade que não exis-
tem em nenhum lugar da própria
URSS.
Stan Beeman é um homem decente
e moral, apesar de sua profissão. Sabe
que uma sociedade democrática deve
se defender de seus inimigos e adversá-
rios, mas também sabe que seu ofício
não é muito compatível – ou, talvez,
completamente incompatível – com a
legalidade, uma vez que os órgãos se-
cretos e suas façanhas estão em cons-
tante conflito com ela. Ele tenta exer-
cer sua profissão dentro de limites le-
gais e morais, e é por isso que sempre
colide com seus chefes e colegas, o que
piora quando ele descobre que sua no-
va namorada pode ter sido enviada pe-
la KGB soviética para seduzi-lo. Ele
participa da cena mais dramática de
toda a série, quando confronta a famí-
lia Jennings depois de descobrir que
seus melhores amigos e vizinhos são
agentes soviéticos e, portanto, seus ini-
migos mortais.
A existência desses espiões conspira
contra a própria ideia de uma socieda-
de governada por um sistema no qual
todas as ações do governo estão sujei-
tas a críticas sistemáticas do parlamen-
to, da imprensa e dos partidos políti-
cos. Eles não podem funcionar em ple-
na luz, mas apenas à sombra, e suas
ações, sejam elas a informação ou a pa-
ralisia e destruição do inimigo – a falsi-
ficação, a tortura e o assassinato são

suas principais armas – ferem a lega-
lidade e o regime de liberdades pú-
blicas. No entanto, a realidade fez
com que agências secretas impuses-
sem sua existência em todos os paí-
ses democráticos; em alguns deles,
de regimes mais rigorosos de aplica-
ção da lei, o estado tenta controlar
essas atividades clandestinas e casti-
ga aqueles que se excedem suas
ações, infringindo as leis. Mas, des-
sa maneira, conseguem apenas redu-
zir e, às vezes, cancelar a eficiência
de seus órgãos secretos. Qual é a so-
lução? Em The Americans, claramen-
te não há solução. Na melhor das
hipóteses, um regime pode condu-
zir seus esforços de contrainteligên-
cia por um caminho mais ou menos
legal, tentando controlar ou derro-
tar os órgãos secretos de seus adver-
sários. Se estes prevalecem, aqueles
pruridos de legalidade vão pelos
ares e os espiões têm livre-arbítrio
para agir, usando todos os recursos,
legais ou ilegais. Isto conspira con-
tra a democracia e pode corrompê-
la e até derrubá-la, transforman-
do-a em mera fachada. Ou em um
tema de filme.
Gostaria de concluir celebrando
a extraordinária liberdade de que
dispõem os autores e cineastas ame-
ricanos para escrever seus livros ou
fazer seus filmes. É verdade que, em
The Americans, os “bandidos” são
sobretudo os agentes soviéticos.
Mas parece que os relativos malfei-
tos do FBI não se devem tanto a ra-
zões de princípio, mas à existência,
entre seus agentes, de um funcioná-
rio essencialmente puro e honesto,
como Stan Beeman. Em outras pala-
vras, por uma razão muito frágil e
passageira. / TRADUÇÃO DE RENATO
PRELORENTZOU

Gilles Lapouge
CORRESPONDENTE / PARIS


A covid-19 e os seus congêne-
res, vírus, bactérias ou micró-
bios, têm uma estranha pro-
priedade: eles elevam ao paro-
xismo a atividade literária de
suas vítimas. O confinamen-
to é uma dádiva para tais cria-
dores. Nestes momentos,
imagino bandos de escribas
curvados sobre o papel, fo-
mentando uma avalanche de
livros a serem publicados da-
qui a um mês ou um ano. Pou-
co importa. A maioria desses
escritos desaparece assim co-
mo nasce. Foi desse modo
que o pior livro de Albert Ca-
mus, A Peste, conheceu um su-
cesso póstumo.
Já dediquei duas crônicas a
dois grandes escritores: Boc-
caccio, cujo livro sobre a pes-
te negra em Florença, em
1349, O Decameron, marca o
nascimento do “romance ita-
liano”. E outra, a um dos maio-
res escritores franceses, La


Fontaine, e sua fábula Os Ani-
mais Enfermos da Peste.
Hoje, há outro, o inglês Da-
niel Defoe (1660-1731), sucessi-
vamente aventureiro, comer-
ciante, agente político e grande
escritor. Sobre o nosso infortú-
nio atual, ele escreveu não um,
mas dois livros. O primeiro, Diá-
rio do Ano da Peste, e o segundo
sobre o confinamento, Robin-
son Crusoe, lido no mundo intei-
ro e alçado à categoria de mito.
Na realidade, Defoe não che-
gou a conhecer a peste, que am-
bienta em Londres. Ele a
compõe a partir de suas lem-
branças da peste de Marselha,
alguns anos antes. Mas Defoe
nem esteve perto da peste. Na-
quela época, a peste grassava
o tempo todo. Londres sofreu
quatro seguidas no século 17.
Na do diário de Defoe, morre-
ram 70 mil pessoas. No mes-
mo século, a peste apareceu
praticamente em todos os paí-
ses da Europa.
Assim como a nossa covid-19,
a de Defoe é uma doença ainda

desconhecida. Ela é “arredia, a
ponto de as vítimas morrerem
sem saber por que morrem”.
Língua nenhuma poderia no-
meá-la, “essa febre é indizível”.
É por isso que gera “inúmeros
rumores insensatos”. Defoe a
descreve com três adjetivos re-
correntes, monótonos: “Hor-
renda, atroz, lúgubre”.
Sendo um bom escritor, ele
esboça cenas terríveis em pou-
cas palavras: “Um homem quei-
mou sobre o seu leito pela doen-
ça. Acho que ele mesmo ateou o
fogo”. Ou ainda um quadro su-
cinto: “Uma família de nove pes-
soas morreu em algumas ho-
ras”. Ou ainda: “Um sujeito cor-
re em direção ao Tâmisa, segui-
do por uma enfermeira aos gri-
tos. O guarda se recusa a tocá-
los com medo do contágio. O
sujeito volta para a sua casa. Dei-
ta-se. E eis que é curado por seu
próprio medo”.
Defoe desconfia dos boatos.
Mas há um que considera ter
fundamento. “Sou favorável a
que se acendam grandes foguei-

ras nas ruas para exterminar o
invisível”.
“Uma mulher sai para a rua
aterrorizada. Um homem a de-
tém e a abraça violentamente.
Ela se debate. Ele a aperta cada
vez mais, depois a solta. Conta
que está com a peste. Ela cai des-
maiada”. E uma observação de
Defoe: os relatos do contágio
são mais cruéis do que o pró-
prio contágio. Ele observa que
muitos atrelam os cavalos às
carroças e se dirigem para as flo-
restas, onde acreditam que en-
contrarão a cura.
Defoe é um homem das “Lu-
zes”, mas é um protestante e,

como tal, quem sabe ainda
não se curou totalmente dos
vaticínios da Idade Média. Es-
ses castigos são desencadea-
dos por “aqueles que não po-
dem ser conhecidos” para pu-
nir os homens “por suas pai-
xões desregradas, suas cóle-
ras violentas”.
Dentro de um século, come-
çará outra época, a das ciên-
cias, do microscópio, de Pas-
teur e de seus discípulos, das
vacinas, da higiene, etc. Sur-
gem então, mesmo nos espíri-
tos esclarecidos, novas explica-
ções das catástrofes de hoje
em dia, não pelo furor dos deu-

ses contra os homens impuros
e ímpios, mas por uma reação
da natureza contra os suplí-
cios aos quais os homens a sub-
metem, a espezinham, a cons-
purcam, a humilham. É o que
afirma o mais ilustre ecologis-
ta francês, o notável Nicolas
Hulot, que se demitiu do cargo
ao se dar conta de que Emma-
nuel Macron sempre se inclina-
rá às ordens dos grandes polui-
dores, como por exemplo, os
fabricantes, entre muitos ou-
tros, de fertilizantes devasta-
dores. É a natureza que toma o
lugar dos deuses. / TRADUÇÃO DE
ANNA CAPOVILLA

Filmes na TV


FOCUS FEATURES

‘The Americans’ está muito
acima das idiotices do
entretenimento, alcançando
um nível intelectual

LIONSGATE FILMS

‘Robinson Crusoe’. Versão animada do romance sobre isolamento, de Daniel Defoe

NINGUÉM


ESQUECE A


DARLENE DE


‘EU TU ELES’


DESTAQUE

Os espiões filósofos

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