O Estado de São Paulo (2020-05-23)

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H8 Especial SÁBADO, 23 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Renato Vieira


Devidamente resguardado em
casa, Jorge Mautner não para
de produzir. Poemas inéditos
do multiartista têm aparecido
com frequência em seu perfil
no Instagram. Além da criação
prolífica, Mautner é conhecido
pelos pensamentos progressis-
tas desde que fundou, no fim
dos anos 1950, o Partido do
Kaos, levantando bandeiras co-
mo a defesa do meio ambiente
e a diversidade sexual. Nesta
entrevista feita por e-mail,
Mautner – que completa 80
anos em 2021 – fala sobre o im-
pacto da pandemia na humani-
dade, faz considerações sobre
a situação atual dos artistas e
afirma manter a fé no Brasil.


lComo estão as coisas e como
você tem passado por esse perío-
do de resguardo? Está na sua
casa no Rio?
Sim, estou na minha casa, sem
sair. Lendo, escrevendo, falan-
do com a minha filha, com a
minha esposa e com meu ami-
go João Paulo Reys (que traba-
lha com Mautner).


lComo está sua relação com a
criação neste momento de qua-
rentena? Você está produzin-
do?
Eu sempre produzi muito. Os
fatos, para sempre e em todos
os instantes, mesmo lá atrás,
são muito fortes, são muito im-
portantes. Eu sempre tive um
pensamento fundamentado na
história. Tudo é história. Tan-
to as estórias como a História,
mas é tudo uma história só. Tu-
do que é da história me abala.
Toda semana, com a ajuda do
João Paulo pelo telefone, te-
nho publicado novos inéditos
poemas em meu Instagram.


lPensa em fazer uma live?
Olha, fazer lives não se coorde-
na com a minha situação atual.
Mas eu recomendo que consul-
tem o meu portal Panfletos da
Nova Era, que é uma obra-pri-
ma feita pelo João Paulo e pela
Maria Borba. Lá estão infinitos
shows gravados, entrevistas
que eu dei, recomendações de
leitura. É interessantíssimo.

lOs shows estão parados neste
momento. As pla-
taformas digitais
revolucionaram o
consumo de músi-
ca e as lives são
um caminho para
que cantores e
compositores apa-
reçam para o pú-
blico, mas o dinheiro para os pro-
fissionais das artes em geral es-
tá escasso. Como resolver essa
questão?
Eu recebo direitos autorais e te-
nho a minha filha Amora Maut-
ner (diretora da TV Globo) que
me financia o apartamento on-
de eu moro, a comida que eu
como. É isso. Infelizmente, mi-

nha situação é um privilégio pa-
ra poucos. Penso que nesse mo-
mento extraordinário deve-
riam haver subsídios públicos
urgentes para quem está preci-
sando. A arte é fundamental pa-
ra a vida do ser humano. O Bra-
sil se fez com os cantos e os ata-
baques dos negros trazidos co-
mo escravos. Getúlio Vargas go-
vernou o Brasil através da Rá-
dio Nacional. Tudo aqui é músi-
ca, é poesia. O brasileiro e a bra-
sileira vivem em
plena imagina-
ção de criativida-
de permanente.

lEm entrevista
ao ‘Estadão’, seu
amigo Gilberto Gil
disse ser otimis-
mo demais que a pandemia te-
nha força para refundar a essên-
cia das pessoas. Você concorda?
Eu acho que toda essa expe-
riência altamente traumática
de sofrimento e dor, com a che-
gada do vírus contrastando
com as conquistas inacreditá-
veis da ciência, incentivará a
imaginação de todos. É preciso

falar sobre essas coisas de qual-
quer maneira para que elas mu-
dem para sempre. O filósofo
Carvaka disse que apenas duas
coisas importam: boa digestão
e nenhuma consciência. Nos
Upanishads (escrituras conside-
radas instruções religiosas pelo
hinduísmo), está escrito: tudo é
sofrimento. E logo abaixo: gos-
tar de tudo que acontece. Por
fim, as últimas palavras do Bu-
da: embora seja inútil, não ne-
gligenciai esforços.

lRegina Duarte foi criticada por
artistas, especialmente após a
entrevista dada para a CNN. Qual
sua opinião sobre ela? (a entre-
vista foi feita antes de Regina dei-
xar o cargo)
Eu não concordo em nada com
o que ela diz. A visão dela está
equivocada. É justamente nas
horas mais atrozes que as vo-
zes dos artistas têm que ser ou-
vidas. Eles mudam a realidade
da história. Nas escolas de sam-
ba, nos candomblés, em todos
os lugares as pessoas conti-
nuam compondo e fazendo
versos que, no fundo, são ora-

ções para o bem-estar em dire-
ção a uma felicidade que se si-
tua tanto no futuro distante co-
mo no instante em que ela es-
tá sendo fabricada no meio do
horror, exaltando o amor.

lVocê batizou seu disco mais
recente com o título ‘Não Há Abis-
mo em que o Brasil Caiba’, frase
de Agostinho da Silva. Essa frase
continua válida para o Brasil de
2020, diante de tantas divisões
políticas e de questões relativas
à desigualdade social potenciali-
zadas pelo novo coronavírus?
Sim, as palavras de Agostinho
são cada vez mais atuais. Quan-
to maior o contraste com que
vivemos, maior será a força do
contrário. Nunca
poderemos nos ca-
lar. O tempo todo,
as orações, as
músicas, os cânti-
cos, a poesia, a pin-
tura trarão sem-
pre o átomo do
otimismo. Isso
não quer dizer que esse otimis-
mo ignore o pessimismo e o ter-
ror. Ele apenas os engloba e os
transforma em algo superior.

lHá quem afirme que a pande-
mia pode servir de pretexto para
o fim da democracia em alguns
países. Você vê essa perspectiva
como verossímil?
Eu vejo sempre todas as possí-
veis perspectivas de tudo. O
acaso, as intenções, o instante
do momento em que tudo se
dá forjam as saídas mais sur-
preendentes. Mas eu acho que
uma situação em que, num
mundo de 8 bilhões de pessoas,
a renda é concentrada nas
mãos de 1% terá que se acabar.
Isso se dará quando todos tive-
rem condições de trabalho dig-
no, de tempo para o devaneio

(que talvez seja o mais impor-
tante porque é o da criativida-
de e do amor). A ciência está
do nosso lado e a maioria dos
povos do mundo também está
do nosso lado, no sentido de es-
tar do lado dessa ideia.

lQuais seus planos para 2020?
Os planos são os que estou con-
cretizando. Escrever, cantar, fa-
lar, irradiar a notícia sempre
nova da esperança. A esperan-
ça não é a última que morre,
ela nunca morre. E como disse
São Paulo, mesmo quando não
houver mais nem fé, nem espe-
rança, o amor continuará a res-
plandecer no universo. “A reli-
gião é o coração de um mundo
sem coração”,
Karl Marx.

lEm 17 de janei-
ro de 2021, você
faz 80 anos. Co-
mo quer ver o Bra-
sil e o mundo no
dia do seu aniver-
sário?
Deslumbrantes, com emprego
para todos os brasileiros, salá-
rios dignos, nossas florestas as-
seguradas, a liberdade imperan-
do em todos os lugares, a com-
preensão mútua. A compreen-
são mútua é a mais importante,
e acontece sempre que se en-
contram opiniões diferentes
ou mesmo inimigas em conver-
sas, música, na ação, na expe-
riência da vida. Tudo dentro do
limite dos Direitos Humanos,
que são sagrados e devem ser
sempre respeitados e não são
questão de opinião. A resposta
é o trabalho, mas o trabalho
criativo. No caso do Brasil, só
avançaremos quando procla-
marmos a segunda abolição da
escravidão exigida por Joa-
quim Nabuco.

Sérgio Augusto


CRIATIVO E


Jorge Mautner faz reflexões


sobre a pandemia e o Brasil


OTIMISTA


l]
ESCREVE AOS SÁBADOS

J


á sobrevivi a uma pandemia. Na
adolescência. Fui o último da mi-
nha classe no colégio a pegar a
gripe asiática, nos estertores de 1957,
talvez nos primeiros meses de 1958.
Como se pode notar, não morri –
nem meus colegas. Na família, só a
mim a gripe pegou.
Por ter sido o último dos moica-
nos a sucumbir àquela mutação do
vírus H2N2, tive algumas semanas a
meu favor para desdenhar dos cole-
gas caídos e ainda por cair de cama.
Minha reprovável fanfarrice foi a me-
mória mais viva que daquele surto
ficou. Febre abrasadora, moleza ge-
ral, dor por todo o corpo, sobretudo
na cabeça, que parecia querer explo-
dir quando mexia com os olhos – tam-
bém desses sintomas, et pour cause,
me lembro; mas nada do tempo que a
gripe me manteve acamado, nem
dos remédios que tomei.
A pandemia seguinte, a gripe
Hong Kong, desembarcada no Rio
na década seguinte, dessa, até por-
que dela escapei, não me recordo
patavina.
A influenza asiática, de início injus-

tamente conhecida como “gripe Singa-
pura”, também se originou na China,
como a covid-19, por volta de 1956. Não
fez mais do que 4 milhões de vítimas
fatais porque descobriram rápido uma
vacina. Antes, porém, derrubou um bo-
cado de celebridades: da rainha Elizabe-
th, da Inglaterra, à Miss Universo de
1957, a bela peruana Gladys Zender.
Sua porta de entrada no continente
foi o Chile. Sua primeira vítima famosa
no Brasil, ironia das ironias, o ministro
da Saúde, Mauricio Medeiros. O da
Guerra, marechal Lott, também a pe-
gou, assim como o patrão dos dois, o
presidente JK, que teria sido contami-
nado por alguém da comitiva do presi-
dente português Craveiro Lopes, em vi-
sita ao Brasil.
A covid-19 não é minha primeira pan-
demia, mas, como todo mundo, estou
debutando em distanciamento físico e
isolamento social compulsórios. Estoi-
camente e, na medida do possível, es-
partanamente.
Adoro ficar em casa, ler, ver filmes e
ouvir música, e não morar sozinho re-
freia um pouco a ânsia de falar com al-
guém, agora, hélàs, só por telefone. Mas

não me agrada conversar por telefone,
nem sequer por Skype ou Zoom, que, ao
contrário do que se propala, não encur-
tam distâncias, acabam com elas. E nos
obrigam a pentear o cabelo e tirar aque-
la camiseta furada ou manchada de café.
Mas, ainda que me agradasse trocar
ideias por correntes eletromagnéticas
ou pela internet, teria de me defrontar
com algo pior: a falta de assunto.
De assunto, propriamente não, de no-
vidades. Ruminamos as mesmas quei-
xas, amaldiçoamos as mesmas figuras,
rogamos as mesmas pragas, repetimos

os mesmos refrões pessimistas – daí
por que prefiro trocar e-mails, cada vez
mais objetivos, parcimoniosos, gracilia-
nos, telegráficos. Porque, além de tudo,
andamos mais lentos de cabeça, moro-
sos e desavindos com nosso ritmo circa-
diano. Eu pelo menos ando.
A semana continua tendo sete dias,
mas que se tornaram tediosamente
indistintos. Sexta-feira perdeu sua
prévia aura de prelúdio do ócio sabáti-
co; o verbo sextar já deve ter caído em
desuso; não sabemos mais dizer se

“ainda é quinta” ou se “já é quinta”.
Até os domingos ficaram menos me-
lancólicos, porque todos os dias da
semana agora o são.
Os analfabetos e iletrados sofrem
mais nas atuais circunstâncias. Os que
vivem de ler e escrever são profissio-
nais da solidão; precisam do isolamen-
to para produzir. Pascal achava que a
tragédia do homem começa quando ele
não consegue ficar sozinho sem se abor-
recer consigo mesmo. A leitura é uma
forma de solidão compartilhada, de diá-
logo a distância, de encontro e viagem
imóveis. Leiam e salvem suas almas e
seu sistema nervoso. Não é por acaso
que, pelas redes sociais, tantos inter-
nautas troquem indicações de leitura.
Ninguém parece discordar de que o
mundo que conhecíamos acabou. Acre-
dita-se que seremos todos, quiçá já so-
mos, nostálgicos de um passado que ain-
da outro dia era presente, embora não
devêssemos sentir saudade de um mun-
do cheio de fanatismos, injustiças, eco-
cídios, desigualdades sociais, polariza-
ções políticas, fora de síncrona com a
biosfera e à mercê de líderes políticos
tão abjetos quanto incompetentes e
mentiras disseminadas eletronicamen-
te por uma rede infinita de delinquen-
tes, ignorantes e boçais.
Os que até pouco tempo enchiam a

boca para exaltar a aurora tecnológi-
ca, a democratização da informação
e a globalização, agora, embaraçados
pelo retumbante fiasco do ultralibe-
ralismo econômico e pela evidência
de que apenas o dinheiro, as divisas,
e não as soluções compartilhadas pa-
ra superar obstáculos cruciais, afinal
se globalizaram, assistem, impoten-
tes e covidiotizados, à mais devasta-
dora ameaça biológica que o planeta
enfrentou nos últimos cem anos.
Devastadora, mas cheia de avisos e
lições. Ao mesmo tempo que parali-
sou o planeta e freou bruscamente a
desatinada pressa em que vivíamos,
a pandemia limpou os canais de Ve-
neza, dissipou a nuvem negra que pai-
rava sobre a China, permitiu que um
puma passeasse, fagueiro, pelas ruas
de Santiago do Chile e um bando de
pinguins se urbanizasse numa cida-
de da Austrália, salientou o escritor
mexicano Juan Villoro, numa entre-
vista esta semana, concedida ainda
sob o impacto de um ninho de coru-
jas que ele avistara na varanda de um
amigo em Barcelona.
E Villoro nem sabia que a covid-19
pôs à prova e pode ter salvo nosso
sistema público de Saúde, condena-
do à morte pela necropolítica do ca-
pitão presidente.

Jorge Mautner, cantor, compositor, escritor

GUSTAVO PERES

‘A ARTE É
FUNDAMENTAL PARA

A VIDA DO SER
HUMANO’

Entrevista*


‘A ESPERANÇA NÃO É

A ÚLTIMA QUE
MORRE, ELA NUNCA

MORRE’

A semana continua tendo sete
dias, mas que se tornaram
tediosamente indistintos

Sobrevivendo


Mautner.
Músico
completa 80
anos em 2021
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