O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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A10 DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional


Após vírus impedir protestos, ativistas


inovam para retomar mobilizações


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Fernanda Simas
Janaina Cesar
ESPECIAL PARA O ESTADO


Antes da pandemia, movi-
mentos sociais e protestos
em massa atormentavam vá-
rios governos ao redor do
mundo. Com o avanço da co-
vid-19, os coletes amarelos,
na França, o movimento das
sardinhas, na Itália, os estu-
dantes chilenos e a revolta do
guarda-chuva, em Hong Kong,
por exemplo, tiveram de mes-
clar novas e velhas táticas de
ação, como panelaços e uso de
hashtags, para manter vivo o
ímpeto das manifestações.
Algumas não resistiram. No
Líbano, que quase entrou em co-
lapso financeiro em dezembro,
a pandemia esvaziou as ruas.
Na Índia, o vírus também acal-
mou as manifestações contra
uma lei de cidadania que discri-
minava muçulmanos. O risco
de contaminação também foi fa-
tal para os protestos pela demo-
cratização da Argélia, interrom-
pidos em março, quando o go-
verno proibiu atos de rua.
Em Hong Kong, o movimen-
to contra a interferência chine-
sa sucumbiu ao isolamento so-
cial. No entanto, não se sabe ain-
da se foram ou não ressuscita-
dos pela decisão de Pequim, na
quinta-feira, de impor uma lei
de segurança nacional para aca-
bar com a autonomia do territó-
rio. De maneira reveladora, o
gesto da China foi anunciado
no momento em que a popula-
ção do território ainda vive sob
restrições sanitárias.
Em outros países, os movi-
mentos sociais ainda lutam pa-
ra manter o entusiasmo dos in-
satisfeitos. Às vezes, um deslize
do governo ajuda, como no Chi-
le. No dia 5, o presidente Sebas-
tián Piñera nomeou como mi-
nistra da Mulher e da Diversida-
de de Gênero a sobrinha-neta
do ditador Augusto Pinochet,
Macarena Santelices, a mesma
que, em 2016, havia afirmado
ser “preciso recordar as coisas
boas do regime militar”. Sem


poder sair às ruas em razão do
isolamento social, mais de 30
grupos feministas protestaram
de forma diferente.
Por meio de um “tuitaço”
com a hashtag #notenemosmi-
nistra (não temos ministra),
que reuniu mais de 22 mil men-
ções em menos de 24 horas, foi
convocado um panelaço, que
ocorreu na mesma noite. Mes-
mo com as manifestações, Piñe-
ra empossou Santelices.
O caso mostra como movi-
mentos sociais mesclam anti-
gas táticas, como panelaços,
com o uso de novas mídias para
manter suas reivindicações vi-
vas. “Movimentos sociais de-
mandam aglomeração, uma so-
cialização fundamental para
concepção de estratégias, des-
de os líderes se articulando até
o desfecho. Há sempre contato
físico. Com esse isolamento,
vem o dilema: como continuar

se mobilizando? Aí entra a rein-
venção dos movimentos, com
panelaços e uso de hashtags”,
afirma a professora de relações
internacionais da ESPM Caroli-
na Pavese.
Na Argentina, as integrantes
da campanha pela legalização
do aborto seguem a mobiliza-
ção de forma virtual. “Neste
ano, não podemos convocar
ações públicas ou marchas, se-
ria irresponsável”, disse a soció-
loga e integrante da campanha
Elsa Schvartzman. “Todas as
atividades estão sendo realiza-
das virtualmente. Encontros,
palestras, reuniões políticas. E
publicamos tudo o que é possí-
vel. A mobilização continua.”
Na Europa, as mesmas táti-
cas estão sendo adotadas. “A di-
fusão de novas tecnologias per-
mite que se organizem protes-
tos online, até mesmo de gran-
des dimensões, como a greve

mundial pelo clima, que ocor-
reu em plena pandemia”, afir-
ma a professora de ciência po-
lítica da Scuola Normale Supe-
riore, em Pisa, Donatella Della
Porta. “Outro exemplo é o uso
de petições, que se multiplica-
ram nesse período. A greve dos
aluguéis promovida por estu-

dantes (da Itália) é um exemplo
disso.” A Itália foi apenas um
dos países que em 1.º de abril
enfrentaram uma mobilização
pelo não pagamento de alu-
guéis, ao lado de EUA, Canadá e
Espanha, entre outros. A ideia
foi popular nos anos 1960
Nos países onde o relaxamen-
to do isolamento começou os
grupos estudam a possibilidade
de voltar a protestar nas ruas,
mas os governos ainda repri-
mem aglomerações. Na França,
os coletes amarelos, que surgi-
ram contra o aumento de impos-
tos sobre o consumo de com-
bustível, tentam retomar sua
agenda. No primeiro sábado de
relaxamento do confinamento
na França, o grupo levou faixas
contra o presidente Emmanuel
Macron e desafiou a proibição
de aglomeração nas cidades de
Nantes e Bordeaux. A polícia
dispersou a manifestação.

O maior obstáculo para os
movimentos sociais, além do
coronavírus, é o aumento da po-
pularidade dos chefes de gover-
no, que naturalmente tende a
crescer durante momentos de
crise e diminuir a empolgação
das manifestações.
No Chile, a popularidade de
Piñera chegou a 6%, em janeiro.
Em abril, segundo o instituto de
pesquisas Cadem, ele já tinha
25%. Macron, que estava com
35% de aprovação em janeiro,
hoje tem 44%, segundo o institu-
to Ipsos. Para tentar sobrevi-
ver, vale tudo. A cineasta chile-
na Dominga Sotomayor organi-
zou um grupo que transmite fil-
mes de protestos online. “A pan-
demia tem sido um momento
difícil para o Chile, porque fragi-
lizou o movimento”, disse Soto-
mayor ao New York Times. “Por
isso, temos de levar o protesto
para a internet.”

Isolamento social esvazia manifestações, mas grupos que ganharam força em várias partes do mundo em 2019 mantêm agenda com


eventos online, panelaços e greve no pagamento de aluguéis; crescimento da popularidade de alguns governantes atrapalha retomada


Diante do impacto econômico
da pandemia, especialistas ex-
plicam que as agendas sociais
ganharam mais visibilidade e os
grupos organizados começam a
ocupar vazios deixados pelo Es-
tado na resposta à crise. “Esses
movimentos têm capacidade
de realizar ações emergenciais.
A situação requer uma resposta
imediata e eles realizam campa-
nhas de arrecadação de alimen-
tos, por exemplo, mostrando
que ter um Estado forte não
substitui a necessidade da exis-
tência dos movimentos so-
ciais”, afirma a professora de re-
lações internacionais da ESPM
Carolina Pavese.
Presentes em ruas e praças
da Itália desde o final de 2019,
para protestar contra o neofas-
cismo, o movimento das sardi-
nhas foi responsável por derro-
tas políticas da extrema direi-
ta italiana representada pela
Liga, partido de Matteo Salvi-


ni. Agora, suas atividades fica-
ram muito restritas, mas o gru-
po afirma que não deixou de
trabalhar.
“Não desaparecemos, esta-
mos nos preparando para o
pós-coronavírus”, disse Andrea
Garreffa, um dos organizado-
res do movimento. Ele explica
que o grupo se organiza interna-
mente, mas não está parado.
“Estamos dando suporte a vo-
luntários, ao pessoal da Prote-
ção Civil e aos médicos por tu-
do que têm feito até agora no
combate a essa doença. Se isso
significa desaparecer dos
meios políticos e de comunica-
ção, não importa.”
No Chile, a revolta social que
eclodiu em 2019 não diminuiu
com a pandemia, pelo contrá-
rio. Com a quarentena total, o
país vive escassez de alguns ali-
mentos – que até desencadeou
protestos de rua em distritos
mais pobres de Santiago.
Movimentos feministas que,
em 2019, estavam nas ruas por
seus interesses, agora atuam
em outras frentes. “Estamos fo-
cadas em ajudar, porque a fome
está aumentando”, disse Marce-
la Betancourt, do grupo La Te-
sis Sênior, que reúne mulheres

com mais de 40 anos que lutam
contra a violência de gênero. Se-
gundo a chilena de 48 anos, que
teve a mãe, a irmã e o sobrinho

infectados pela covid-19, a coor-
denação da ajuda ocorre em as-
sembleias populares e por meio
de grupos de bairro.
“O governo se dedicou a aju-
dar empresários ao permitir
que funcionários fossem demi-
tidos ou tivessem seus salários
reduzidos e hoje as pessoas pas-
sam fome”, afirma.
Como resposta às denúncias,
o governo do presidente chile-
no, Sebastián Piñera, anunciou
na sexta-feira o plano “Alimen-
tos para o Chile”. O programa
ocorrerá em três regiões: Quin-
ta Normal, Estación Central e

Santiago. A ideia é entregar 2,
milhões de cestas básicas e pro-
dutos de higiene para as famí-
lias. Em comunicado, o gover-
no informa ainda que, durante
o fim de semana, a entrega será
ampliada para 32 comunas de
Santiago e depois ao restante
do país.
“Os movimentos sociais fize-
ram duas coisas que não são
muito visíveis: se organizaram
internamente e organizaram
ações de mutualismo, não para
fazer caridade, mas para denun-
ciar violações de direitos como
o alimentar, por exemplo, que

deveria ser fornecido pelo Esta-
do”, afirma a professora de ciên-
cia política e sociologia da Scuo-
la Normale Superiore, em Pisa,
Donatella Della Porta.
Os movimentos feministas
argentinos também atuam nes-
sa frente desde o início da pan-
demia. “Colocamos cartazes
nos centros de atenção e restau-
rantes populares com um espa-
ço para que os estabelecimen-
tos deixem seus dados e as pes-
soas possam ir até eles buscar
comida, por exemplo”, conta El-
sa Schvartzman, da Campanha
Nacional pelo Direito ao Abor-
to Legal, Seguro e Gratuito.
“As escolas estão fechadas e
isso é um problema para a ali-
mentação das crianças. Com is-
so, muitas professoras que fa-
zem parte da campanha traba-
lham em turnos para que as es-
colas sejam um local de distri-
buição de alimento.”
Carolina Pavese explica que
os movimentos sociais estão
diante de um “gatilho” – “acon-
tecimento inesperado que con-
duz a uma ruptura do status
quo e leva a uma transição”. “Es-
ses momentos servem como
plataforma para dar visibilida-
de a agendas e movimentos so-
ciais. A saúde pública e as condi-
ções de trabalho viraram uma
pauta obrigatória na política”,
afirma. / F.S. e J.C.

lAtivismo
“Estamos dando suporte ao
pessoal da Proteção Civil e
aos médicos por tudo que
têm feito. Se isso significa
desaparecer dos meios
políticos, não importa.”
Andrea Garreffa
MOVIMENTO DAS SARDINHAS

lAlternativa

Grupos tentam reduzir impacto econômico da crise


ANTHONY WALLACE / AFP

“A difusão de novas
tecnologias permite que se
organizem protestos online,
inclusive de grandes
dimensões, como a greve
mundial pelo clima, que
aconteceu em plena
pandemia. Outro exemplo é
o uso de petições, que se
multiplicaram no período”
Donatella Della Porta
PROFESSORA DE CIÊNCIA POLÍTICA DA
SCUOLA NORMALE SUPERIORE, DE PISA

Vigilância. Manifestantes em Hong Kong protestam contra o governo de Pequim; movimento do guarda-chuva se encolheu em razão do isolamento social

IVAN ALVARADO / REUTERS

Ativistas mudam atuação


e agora ajudam a


fornecer comida e


auxiliam profissionais da


saúde contra a covid-


Alto risco.
Chilenos
entram em
confronto
com
policiais, em
Santiago,
em protesto
contra falta
de comida
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