O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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A12 Internacional DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


L


iderar uma empresa ou um
país se parece muitas vezes
com educar uma criança. Pa-
ra se desempenhar bem esses pa-
péis, é preciso estar disposto a dizer
a verdade e a agir com coerência,
por mais que isso desagrade aos ou-
tros. A ciência política tem um no-
me para os líderes que preferem dar
boas notícias a encarar uma realida-
de frustrante: populistas.
No momento em que vivemos, is-
so vale igualmente para a economia
e para a saúde. O conflito entre am-
bas é uma invenção dos ilusionistas.
Pesquisadores da Universidade Co-

lumbia, em Nova York, calcularam
que, se os EUA tivessem adotado as
mesmas medidas de distanciamento
social uma semana antes, o número de
infectados teria sido 61,6% menor e o
de mortos, 55%, na data de 3 de maio.
Ao menos 36 mil pessoas teriam deixa-
do de morrer.
Se as medidas tivessem sido adota-
das duas semanas antes, o número de
casos seria 82% menor e o de mortes,
84%. Isso ocorre, segundo os cientis-
tas, porque nos primeiros dias a prolife-
ração do vírus é muito mais intensa. O
estudo foi financiado pelos Institutos
Nacionais de Saúde, espécie de SUS

americano, pela Fundação Nacional de
Saúde e pela Fundação Morris-Singer.
Assim como seus patrocinadores,
suas conclusões são bem convencio-
nais. As principais autoridades de saú-
de americanas vinham aconselhando a
Casa Branca a adotar medidas rigoro-
sas desde fevereiro, assim como o servi-
ço secreto alertou o presidente Donald
Trump desde janeiro sobre a gravidade
da ameaça representada pela covid-19.
O presidente ouviu e entendeu. Mas,
segundo seu próprio relato, não cabia a
ele “alarmar a população”. Por isso, ele
menosprezava publicamente o risco.
Quando havia 16 casos confirmados,
no dia 27 de fevereiro, Trump decla-
rou: “Vai desaparecer. Um dia, é como
um milagre, vai desaparecer”. O presi-
dente estava preocupado com o impac-
to da epidemia sobre a economia ameri-
cana – e, claro, sobre suas chances de se
reeleger em novembro.
Se a prioridade dele não fosse dar
boas notícias, mas proteger a popula-
ção – e, com ela, a economia –, a mensa-

gem de Trump teria sido o oposto: “É
uma ameaça séria, que vai crescer, e
precisamos adotar medidas à altura
dessa gravidade, para que o dano em
vidas humanas e na economia seja o
menor possível”.
A analogia com os pais não poderia
ser mais evidente. O que se diz a uma
criança sobre uma vacina? Que não é
necessária? Ou que não vai doer? É ne-
cessária e vai doer um pouco, mas será
uma dor passageira, bem menor e me-
nos grave do que a da doença que ela
vai evitar. É o mal menor, a coisa certa a
fazer.
No dia 29 de março, escrevi aqui:
“Existem dois grupos de países no
mundo. De um lado, os que não espera-
ram sua rede hospitalar entrar em co-
lapso para entender a gravidade da
ameaça. De outro, os que preferiram
pagar para ver. No primeiro grupo des-
tacam-se China, Coreia do Sul, Cinga-
pura, Taiwan, Alemanha, Reino Unido
e Argentina. No segundo, Irã, Itália, Es-
panha, EUA e México. O Brasil ainda

parece estar escolhendo em qual
grupo deseja entrar”.
No primeiro grupo estão países
cujos governos trouxeram a má notí-
cia a sua população. Nem por isso
perderam apoio. Ao contrário. Ela
entendeu, aderiu, e o custo humano
e também econômico foi menor. Es-
sa é a experiência também dos pais
educadores. Depois do primeiro
choque da frustração, que nunca é
agradável, os filhos se acalmam, en-
tendem e passam a confiar ainda
mais nos pais.
O problema com a mentira é que,
uma vez dita pela primeira vez, exi-
ge novas mentiras. Ou um grande
trabalho de reparação para se voltar
à verdade. Foi o que a Itália e a Espa-
nha fizeram. Assim como o Reino
Unido começou na mentira, mas vol-
tou ao curso da verdade a tempo de
evitar o mal maior. Irã, EUA, México
e Brasil, assim como a Rússia, conti-
nuam brigando com a realidade.
Com os resultados visíveis.

LOURIVAL


SANT’ANNA


Abha Bhattarai
THE WASHINGTON POST


As lojas dos EUA estão rea-
brindo para uma nova fase.
Varejistas que antes passa-
ram anos tentando fazer com
que os clientes demorassem
o máximo possível entre suas
prateleiras, na esperança de
que comprassem mais do que
precisavam, agora estão se
adequando à realidade do
“grab-and-go” (comprar e ir
embora).


Chegaram ao fim, dizem
eles, os dias de experimentar
maquiagem ou testar brinque-
dos nos corredores. O foco ago-
ra é deixar as compras mais
rápidas, fáceis e seguras diante
das mudanças de longo prazo
nos hábitos e expectativas dos
consumidores.
A Apple está checando a tem-
peratura das pessoas na porta
das lojas. A Best Buy pede aos
clientes que comprem com ho-
ra marcada. A Macy’s e a Nords-
trom acabaram com consultas

e serviços de beleza, e a Gap fe-
chou banheiros e provadores. A
gigante dos cosméticos Sepho-
ra não permite mais que clien-
tes experimentem produtos.
Outras lojas estão pondo devo-
luções em quarentena por até
72 horas antes de colocá-las de
volta nas prateleiras.
A American Eagle está rein-
ventando cada aspecto da expe-
riência de compra. A empresa
investiu em pontos de coleta e
máquinas de infravermelho
que medem a temperatura dos

clientes. Os displays na entrada
das lojas, antes com roupas, vi-
raram “mesas de boas-vindas”,
com frascos de desinfetante pa-
ra as mãos, máscaras descartá-
veis e tapetes azuis que limpam
as solas dos calçados.
Até as roupas estão dobradas
de maneira diferente, para evi-
tar que os clientes mexam nas
peças ao andar pela loja. Os no-
vos protocolos, que já foram lan-
çados em quase metade das 435
filiais nos EUA, dão a imagem
de como as interações serão di-
ferentes. “Queremos que as pes-
soas vejam algo novo assim que
entrem na loja”, disse Andrew
McLean, diretor comercial da
empresa. “O tapete pegajoso, a
mesa de boas-vindas – tudo isso
desencadeia na mente do clien-
te a ideia de que as coisas estão
diferentes.”
A American Eagle, que agora
limita o número de pessoas nas
lojas, usa um aplicativo para no-
tificar os clientes de que está na
sua vez de comprar. E detalhou
novos protocolos para funcio-
nários em um manual de 65 pági-
nas, que explica como dobrar
blusas e calças para permitir
que os clientes vejam os deta-
lhes sem tocar nas peças.
Esses esforços ilustram até

que ponto os varejistas querem
tranquilizar os consumidores,
garantindo que é seguro voltar
a comprar. A indústria, que já
vinha sofrendo, foi duramente
atingida pela quarentena. Qua-
tro grandes cadeias – J. Crew,
Neiman Marcus, Stage Stores e
J.C. Penney – entraram com pe-
dido de proteção contra falên-
cia neste mês, e uma quinta, a
Pier 1, está prestes a fechar as
portas.
“A experiência nos mostrou
que afrouxar quarentenas signi-
fica ressurgimento das doen-
ças”, disse Robert Bednarczyk,
professor de epidemiologia da
Escola de Saúde Pública da
Emory University. “Máscara,
checagem de temperatura, hi-
giene das mãos – todas essas me-
didas são importantes para a
reabertura das lojas, mas ainda
existem riscos de aumento da
transmissão.”

Os varejistas passaram anos
adicionando displays interati-
vos, estações de amostra e até
paredes de escalada e bares
com serviço completo dentro
de suas lojas, na esperança de
oferecer aos clientes uma expe-
riência que eles não podiam
acessar online. Mas os analistas
dizem que muitas dessas inicia-
tivas agora são consideradas im-
praticáveis ou insalubres, o que
exige uma transformação geral
que pode deixar a experiência
de compra menos agradável e
reduzir ainda mais o já restrito
espaço do varejo.
Muitas mudanças têm o obje-
tivo de passar a impressão de
segurança e praticidade: se al-
guém pede para usar o prova-
dor da American Eagle, por
exemplo, os funcionários de-
vem desinfetar maçanetas e
acessórios, à vista do cliente, an-
tes de permitir que eles entrem
para provar as roupas.
“Os varejistas estão começan-
do a pensar além da limpeza das
lojas”, disse Wendy Liebmann,
CEO da WSL Strategic Retail,
empresa de consultoria de No-
va York. “Estão pensando na
promoção das vendas, no rumo
que as coisas vão tomar. Como
eles podem facilitar as compras
das pessoas? Essa pandemia
não vai se estabilizar. Será uma
longa montanha-russa.”
Na Child’s Play, loja de brin-
quedos de Washington, o dono,
Steven Aarons, conta com me-
nos compras por impulso – e
menos crianças nos corredo-
res. Ele está retirando as mesas
de jogos e substituindo as car-
tas de Pokémon por itens de
maior valor – como scooters e
quebra-cabeças de mil peças.
“Parece que estamos come-
çando um negócio totalmente
novo”, disse Aarons, que abriu a
loja há 34 anos. “É doloroso di-
zer que vamos tirar as mesas de
jogos e não deixar mais as crian-
ças correrem pela loja, mas tam-
bém é a coisa certa a fazer.”
Pode levar anos, diz ele, até
que os clientes se sintam à von-
tade para passar horas na loja
com os filhos. Enquanto isso,
ele reconstruiu o site da empre-
sa e adicionou um serviço de
entrega que tem sido muito
procurado desde o início da
pandemia. Os funcionários en-
tregam cerca de 60 pedidos
por dia, embora as vendas te-
nham caído 50%.

WASHINGTON


A lenta reabertura em meio à
pandemia mudou os hábitos da
Pandora, joalheria dinamarque-
sa que opera 375 lojas nos EUA.
Ela trouxe suas máquinas de
limpeza de joias dos bastidores
para a área de vendas, para que
os funcionários possam higieni-
zar cada peça após experimenta-
da, à vista dos clientes. O pró-
prio gesto de experimentar joi-


as tem uma série de precauções.
A empresa criou um sistema
elaborado para garantir que
clientes e funcionários não en-
trem em contato físico. Os clien-
tes são instruídos a ficar a um
metro dos balcões da loja. Se al-
guém quiser experimentar algu-
ma joia, o funcionário retira o
item do estojo e o coloca numa
bandeja no balcão. “O cliente só
dá um passo à frente depois que
o funcionário der um passo
atrás, para que se mantenha
sempre um espaço de 1,8 metro
entre eles”, disse Sid Keswani,
presidente de operações.
A empresa também está limi-
tando o número de clientes a
cinco de cada vez e desenvol-
vendo novas medidas de segu-

rança para a movimentada tem-
porada de férias, responsável
por cerca de 40% das vendas.
“Estamos sentindo que é uma
jornada bastante segura”, disse
Keswani. “Mas digo bastante se-
gura porque, como você sabe,
ninguém tem garantia de nada
nos dias de hoje.”
Os dados apontam um au-
mento constante no tráfego de
pessoas desde que os shop-
pings começaram a reabrir nos
EUA este mês. Uma análise de
oito shopping centers que abri-
ram em 1.º de maio em vários
Estados mostra que o fluxo dei-
xou de ser um mero gotejamen-
to – 20% da quantidade de clien-
tes do ano anterior – e se tornou
uma corrente rápida que, em al-

guns casos, excedeu a média diá-
ria de um ano antes.
Em 6 de maio, o Midland Park
Mall, no Texas, registrou um sal-
to de 79% em relação ao dia ante-
rior, de acordo com o Placer.ai,
que analisa os padrões de tráfe-
go de pessoas usando dados de
localização de 30 milhões de dis-
positivos. Enquanto isso, as lo-
jas da Macy’s na Carolina do Sul
viram o tráfego subir 9% em re-
lação ao ano anterior.
A mesma história vem se de-
senrolando na American Eagle,
onde os clientes retornaram, de
início, com cautela e, depois,
com mais entusiasmo. As ven-
das também estão aumentan-
do: muitas lojas reabertas ven-
dem tanto quanto há um ano,

de acordo com Jay Schottens-
tein, executivo-chefe da empre-
sa. “Os clientes que entram es-
tão comprando”, disse. “Nin-
guém está vindo só para dar
uma olhadinha.”
A American Eagle fechou to-
das as suas 980 lojas nos EUA
em março e deu férias à maioria
dos 40 mil funcionários. A rea-
bertura começou no dia 1.º,
com uma série de diretrizes cria-
das com a ajuda de médicos: os
funcionários devem lavar as
mãos por 20 segundos no início
de cada turno e depois desinfe-
tar o termômetro da loja antes
de medir sua própria tempera-
tura.
Juntamente com os novos
protocolos, há considerações

mais subjetivas. Os funcioná-
rios são incentivados a sorrir
por trás das máscaras e a prestar
atenção aos sinais não verbais.
“Com as máscaras, você talvez
se sinta um pouco estranho no
começo, mas não deixe que isso
atrapalhe”, diz o manual. “Não
queremos que pareça uma inte-
ração estéril ou clínica.”
Há também tutoriais para
máscaras faciais do tipo “faça vo-
cê mesmo” e um guia para criar
crachás que mostram uma foto
de cada funcionário, abrindo
um sorriso. Os executivos di-
zem que o objetivo é tranquili-
zar os clientes. “Foi um proces-
so de dois meses para descobrir
o que será necessário para que
as pessoas se sintam seguras”,
disse Schottenstein. “É uma no-
va realidade: os clientes querem
voltar, mas querem voltar para
onde se sentem seguros.” / WP

EMAIL: [email protected]
LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Lojas reabrem e


mudam hábitos de


compra nos EUA


Joalheria cria regras para evitar contato com clientes


lReabertura

Medição de temperatura, provadores fechados e novas formas de


dobrar roupas mudam a experiência dos consumidores americanos


Franquia dinamarquesa


com 375 lojas nos EUA


limita número de
pessoas e higieniza todas


as peças experimentadas


Mudança. Loja da American Eagles no Easton Town Center, na cidade de Columbus, em Ohio: compras mais rápidas e tocando o mínimo nas mercadorias


Saúde e populismo


ANDREW SPEAR/THE WASHINGTON

“Parece que estamos
começando um negócio
totalmente novo”
Steven Aarons
DONO DE LOJA DE
BRINQUEDOS DE WASHINGTON
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