O Estado de São Paulo (2020-05-24)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-14:20200524:
A14 DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Giovana Girardi


A emergência nacional de saú-
de, social e econômica provo-
cada pela pandemia de covid-
19 criou uma onda de solida-
riedade no Brasil que já resul-
tou em mais de R$ 5 bilhões
de doações. A maior parte é
proveniente de grandes em-
presas, mas pessoas físicas,
mesmo com pequenas quan-
tias, colaboram para mudar o
cenário de filantropia no Bra-
sil. Até áreas que não tinham
tradição de captar recursos,
como a ciência, estão se bene-
ficiando. E a expectativa é de
que, da tempestade, possa
surgir uma cultura maior de
doações no Brasil.
O dado foi compilado pela As-
sociação Brasileira de Captado-
res de Recursos (ABCR), que
criou um monitor das doações
para mapear as ações de comba-
te ao coronavírus. Segundo a or-
ganização, o valor é inédito no
País. O último censo sobre filan-
tropia feito no País, referente a


2018, pelo Grupo de Institutos
Fundações e Empresas (Gife),
rastreou um total de R$ 3,25 bi-
lhões de doações ao longo de
todo aquele ano. Com a resssal-
va de que esse censo só mede o
volume de recursos corporati-
vos, de investidores sociais.
“Existe pouco dado sobre fi-
lantropia no Brasil, o que é la-
mentável. Resolvemos fazer o
monitor porque percebemos
que algo estava acontecendo
em decorrência da pandemia.
Em um fim de semana, vi anún-
cios de doações que chegavam a
quase R$ 500 milhões”, conta
Márcia Woods, presidente do
conselho deliberativo da AB-
CR. O site foi lançado no dia 31
de março, com esse valor. Nesta
sexta, dois meses depois, já so-
mava mais de R$ 5,2 bilhões.
A maior parte (86%) é prove-
niente de empresas, sendo Itaú,
Vale e JBS os principais doado-
res. Campanhas de financia-
mento coletivo respondem por
7% das doações. “Mas são mais
de 300 campanhas, que juntas

já arrecadaram mais de R$ 345
milhões. São mais de 320 mil
pessoas doando, de R$ 5 a R$ 1
mil. É bastante democrático e
diverso”, relata Márcia.
Cerca de 70% das doações
são direcionadas para infraes-
trutura e insumos de saúde (co-
mo máscaras, EPIs e reagentes
para testes). Outra parcela gran-
de é para lidar com os impactos
socioeconômicos do isolamen-
to e da pandemia. “Muitas cam-
panhas são pensadas para a se-
gurança alimentar, fazendo che-
gar alimentos onde o benefício
do governo não chega”, afirma.
A pandemia, apontam espe-
cialistas ouvidos pelo Estadão,
escancarou as fragilidades que
o País já tinha há muitos anos,
em especial nos sistemas de saú-
de – de falta de leitos e de equi-
pamentos e da nossa capacida-
de de responder a uma emergên-
cia – e trouxe à tona a necessida-
de de haver uma rede de colabo-
ração mais estruturada.
Uma pesquisa feita em 2016
sobre o perfil das doações no

Brasil já havia revelado que o
brasileiro é solidário, mas age
muito com base na emoção do
momento – como em uma tragé-
dia –, mas em geral não tem mui-
ta constância em sua filantro-
pia. “A maioria (62%) doa bens,
como roupas. Essa é a clássica
doação do brasileiro. Ele ajuda
em desastres, campanhas do
agasalho”, afirma Paula Fabia-
ni, diretora-presidente do Insti-
tuto para o Desenvolvimento
do Investimento Social (Idis),
que conduziu o estudo.
O instituto criou para a pan-
demia o Fundo Emergencial pa-

ra a Saúde, que já arrecadou R$
37 milhões para hospitais que
atendem pelo SUS e algumas
instituições de pesquisa, como
a Fiocruz. A maioria do recurso
vem de empresas, mas pelo me-
nos R$ 1,6 milhão foi doado por
mais de 10 mil pessoas.
A pesquisa do Idis havia mos-
trado que, entre os que doam,
46% o fazem para organizações
não governamentais, mas me-
nos de 20% são recorrentes. “É
uma doação casuística, emoti-
va. O brasileiro quer aliviar o so-
frimento imediato de alguém,
mas não age de uma forma estra-
tégica para mudar um determi-
nado cenário”, define Paula.
Segundo ela, o instituto ob-
servou também, em pesquisa
posterior, que o brasileiro não
tem clareza sobre qual é a causa
que lhe motiva nem sobre o pa-
pel das organizações da socieda-
de civil. A expectativa é de que
isso talvez possa mudar com a
pandemia, com os movimentos
de doações se tornando mais
frequentes e organizados.

“Acredito que a era da solidarie-
dade veio para ficar. Ou pelo me-
nos os aportes das empresas.
Há uma cobrança mundial para
que elas tenham um maior com-
prometimento. Para que o pa-
pel delas não seja só gerar lucro,
mas valor para a sociedade e pa-
ra o ambiente”, diz Paula.

Incentivos fiscais. Um gargalo
para o aumento dessas iniciati-
vas é a falta de incentivos fis-
cais. Alguns só valem para em-
presas que declaram lucro real.
Para pessoas físicas, também
há incidência de impostos.
Por causa da pandemia, fo-
ram apresentados no Congres-
so 12 projetos de lei de isenção
para as doações voltadas para o
combate à covid-19. “É louvá-
vel, mas queremos que seja uma
alteração perene, e não só para
a saúde. A pandemia terá um im-
pacto socioeconômico gigante.
Queremos isenções para todas
as organizações sem fins lucrati-
vos atuando em diferentes cau-
sas”, afirma Márcia.

A


bióloga Natália Paster-
nak, do Instituto de Ciên-
cias Biomédicas da USP,
tem se destacado na pandemia
do novo coronavírus como uma
das principais divulgadoras cien-
tíficas do País a explicar assun-
tos complexos que, da noite pa-
ra o dia, se tornaram corriquei-
ros no nosso cotidiano, como
cloroquina, testes sorológicos e
de PCR e ensaios clínicos.
Seu esforço para combater a
covid-19 e a desinformação cien-
tífica, porém, vai além de seus
estudos e a participação em TVs,
jornais e redes sociais. Envolve


um trabalho de bastidores e o
aporte de pelo menos R$ 2,4 mi-
lhões em pesquisas e insumos.
Neta de uma das fundadoras
do grupo Vicunha, que controla
a CSN (após a morte de sua avó,
a família vendeu a parte para os
outros sócios, os Steinbruch),
Natália tem aproveitado a heran-
ça para investir em ciência.
“Na minha vida de cientista,
eu sempre quis dar um bom uso
para esse dinheiro. Minha avó fa-
zia muita filantropia. Era uma
doação mais voltada para a colô-
nia judaica – coisa bastante co-
mum entre os judeus. Ciência
não ficava no radar. Nem estou
falando só de doação, mas de
uma parceria mais constante, co-
mo é comum nos Estados Uni-
dos (o chamado endowment, ou
fundos patrimoniais)”, diz.
Em 2018 ela fundou o Institu-
to Questão de Ciência, voltado

para, como explica Natália, “à de-
fesa da ciência”. O IQC edita a
Revista Questão de Ciência e
produz conteúdos que comba-
tem as fake news e distorção do
conhecimento científico. Para o
instituto, Natália já faz um apor-
te anual de cerca de R$ 1,5 mi-
lhão. E com a pandemia, ela viu a
necessidade de investir também
nos esforços contra a doença.
“Começou com um professor
da Santa Casa comentando co-
migo que o hospital estava deses-
perado porque não tinha dinhei-

ro para comprar os EPIs. Ele me
disse que precisava de R$ 150
mil e eu falei: ok. Foi minha pri-
meira doação. O ICB, onde eu
pesquiso, precisava desespera-
damente de reagentes para os
testes diagnósticos. O custo era
R$ 120 mil. Depois doei mais R$
150 mil para o Hospital Universi-
tário da Unicamp para comprar
EPIs”, relata Natália.
Foi quando ela conheceu o
Inspire, da Poli-USP, que desen-
volve um ventilador pulmonar
de baixo custo. “O projeto ia

morrer no papel se eles não con-
seguissem comprar insumos pa-
ra fazer o piloto. O coordena-
dor, Marcelo Zuffo, me falou
que precisaria de no mínimo R$
2 milhões para o dia seguinte.
Envolvi minha mãe, que é pro-
fessora da Faculdade de Arqui-
tetura e Urbanismo, porque pre-
cisaria pegar dinheiro de inves-
timento da família, e ela to-
pou.” A ajuda permitiu que Zuf-
fo fizesse o piloto e agora ele
está atraindo outros doadores.
Natália, por sua vez, decidiu
contar essa história para inspi-
rar outros milionários a doa-
rem para a ciência não só neste
momento de emergência, mas
de um modo permanente.

Pioneirismo. Doações para
ciência são raras no Brasil, ao
contrário do que ocorre nos
EUA. A primeira iniciativa foi a
criação, pela família Moreira Sal-
les, do Instituto Serrapilheira,
de fomento à pesquisa. “Essa é
uma fonte de financiamento im-
portante porque consegue dar
apoio para que pesquisadores se
dediquem à coisas que nem a
fonte pública nem a fonte priva-
da estão interessados em finan-
ciar. A filantropia para a ciência
consegue aguentar um risco
maior, tem mais flexibilidade”,
diz Hugo Aguilaniu, diretor-pre-
sidente do Serrapilheira.
As universidades começaram
a se organizar para isso só ago-
ra. A USP desenvolveu uma pla-
taforma para receber doações
para os projetos científicos de-
dicados a covid-19. O USP Vida
arrecadou, em um mês, cerca de
R$ 500 mil, segundo o pró-rei-
tor de pesquisa, Sylvio Canuto.
A Unicamp também se organi-
zou para captar recursos. O rei-
tor Marcelo Knobel procurou tri-
bunais de Justiça para pedir re-
passes de recursos de processos
judiciais, como multas e termos
de ajustamento de conduta.
Conseguiu com isso mais de R$
10 milhões. Ele também criou
um mecanismo na universidade
para receber doação de pessoas
e empresas. Já conseguiu mais
cerca de R$ 3 milhões, além de
equipamentos, como tablets pa-
ra que os pacientes de covid-
do Hospital Universitário pos-
sam falar com seus familiares.
Para animar os profissionais de
saúde, até flores foram doadas,
dos produtores da cidade vizi-
nha de Holambra. /G.G.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Emergência da covid-19 movimenta no


País mais de R$ 5 bilhões em doações


lFontes

A maior parte é proveniente de grandes empresas, como Itaú e Vale, mas pessoas físicas, mesmo com pequenas quantias, colaboram


para mudar o cenário de filantropia; pesquisa indica mais de 300 campanhas desde o início da crise de saúde e mais de 320 mil doadores


DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

lDuradouro

Hospital completa dois meses de isolamento. Pág. A15 }


33%
das doações registradas pelo
Monitor das Doações da ABCR
vieram do sistema financeiro.

14%
do setor de alimentos e bebidas.

Metrópole


Doação ajudou a tirar


do papel ventilador


pulmonar; Unicamp


também se organizou


para atrair contribuição


UNICAMP

“O ideal é que isso que
está surgindo possa
se manter de
tal forma que
se torne parte
importante da ciência
brasileira. Para
dar condições de
ela ser mais
reativa e criativa.”
Hugo Aguilaniu
PRESIDENTE DO SERRAPILHEIRA

Filantropia agora


avança também em


benefício da ciência


Ajuda.
A bióloga
Natália
(acima)
usou
recursos da
família; Ao
lado, flores
doadas para
profissionais
de saúde
da Unicamp
Free download pdf