O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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A18 DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


UGO


GIORGETTI


Esportes


João Prata


Afonsinho é do tempo em que
o futebol era mais inspiração e
menos transpiração. Treinar
em apenas um período permi-
tiu que o craque de Santos e
Botafogo nos anos 60 e 70 ter-
minasse o curso de Medicina
na UERJ (Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro).
Ficou marcado por usar bar-
ba e cabelo compridos em ple-
na ditadura militar. Fora de
campo, era próximo de músi-
cos como Gilberto Gil, Moraes
Moreira e Paulinho da Viola.
Ganhou até canção em home-
nagem – Meio de Campo, de Gil.
Fundamental na luta por me-
lhores condições de trabalho,
ele se tornou o 1.º jogador a ter
o passe livre. Em entrevista ao
Estadão por telefone, o ex-
meio-campista falou sobre sua
quarentena em Paquetá, no
Rio, e a expectativa por profun-
das transformações no fute-
bol, modalidade que vê com
descrédito, mecanizado como
um videogame. Na opinião de
Afonsinho, é absurda a ideia
de pensar em abertura do fute-
bol nacional neste momento.


lComo está sendo esse período
na quarentena?
Em isolamento, saindo só para
ir ao mercado. Vivo com mi-
nha companheira apenas. Pa-
quetá, na teoria, seria fácil de
isolar, por ser uma ilha, mas o
problema da sociedade na pan-
demia é a ignorância, a falta de
senso crítico. Sigo acompa-
nhando o esporte pela tevê e
aproveitando para ler.


lO que está lendo?
Ganhei da minha filha o livro
Um Defeito de Cor, da Ana Ma-
ria Gonçalves. É como tenho
conseguido manter o equilí-
brio emocional, que acho que
é o mais complicado nesse pe-
ríodo. Terminei agora também
o Ruptura (Manuel Castells),
que fala sobre a crise na demo-


cracia liberal, explica muito do
que estamos vivendo.

lVocê, que é médico, como tem
visto o Brasil na pandemia?
É um problema global. Algu-
mas organizações que cuidam
dos problemas comuns da hu-
manidade, no caso da saúde a
OMS, deveriam ser o ponto de
encontro de informação. Mas
vejo uma dificuldades das pes-
soas se informarem de manei-
ra segura, e aí fica essa malu-
quice, um desastre completo.

lO que achou do encontro dos
presidentes do Flamengo e do
Vasco com o Bolsonaro?
Não há a menor condição de
pensar em abrir. É um proble-
ma sério. O futebol tem impor-
tância muito grande social,
econômica e politicamente. A
pandemia é uma questão sani-
tária, de saúde universal. O mo-
mento político é desastroso.
Essa história de já pensar em
abertura aqui é um absurdo.
Tem que usar a inteligência pa-
ra ver as melhores condições.
Abrir no Brasil, com o nível de
desorientação, é desumano.
Não temos condições nem
com protocolos específicos.

lO que acha do futebol brasilei-
ro atualmente?
Ando muito desencantado. É
algo muito doloroso porque a
minha vida sempre foi em vol-
ta da bola. Por escrever na Car-
ta Capital uma vez por semana,
acompanho o futebol para não
ficar por fora. Mas para mim o
futebol de hoje parece um jogo
eletrônico. Ficou mais do que
mecanizado, ficou eletroniza-

do. Já é difícil saber na TV se é
videogame ou não. É um jogo
muito preso, muito contido.
Salva um ou outro jogador ge-
nial. A falta de liberdade do jo-
gador hoje é muito grande. De
certa forma é um reflexo da so-
ciedade. É uma face boa para
analisar o nosso momento de
vida.

lA falta de liberdade do jogador
também se estende para fora de
campo. Falta consciência de clas-
se a essa nova geração?
Faz muita falta o posiciona-
mento dos atletas. O jogador é
um interlocutor de grande al-
cance. Não tem dúvida que é
um problema. Mas também
não acho que seja alienação. É
coerente com o que vivemos.
Historicamente o jogador se
posicionou. Primeiro, para se
sindicalizar. Depois, tive meu
episódio com o passe livre. De-
pois veio a “Democracia Corin-
thiana”, apareceu o Bom Sen-
so. Hoje existe essa retração
pelas condições de o cara ficar
isolado, de ser blindado por as-
sessores, empresários.

lO que você sugere para endirei-
tar os clubes sem prejudicar os
atletas?
Existe um desacerto que em al-
gum momento vai parar. O Fla-
mengo, Palmeiras, Grêmio... O
Bahia, também, todos esses pa-
recem estar se organizando.
Mas vai ficar cada vez menor o
número de clubes organiza-
dos. O exemplo de descalabro
é o Cruzeiro, que é um grande
clube. Não vai continuar indefi-
nidamente assim, acredito. O
problema tem que desabro-
char. Como um tumor. Hoje a
gente ouve os clubes da elite
receberem fortunas e ao mes-
mo tempo dever salário para
jogador, que é uma despesa fi-
xa. Como pode?

lFaltam melhores profissionais
para administrar o futebol?
Existe hoje uma hiperconcen-
tração de renda de alguns clu-
bes. E isso é Mundial. Acho
que tem solução porque senão
não acreditaria na humanida-
de. Os Estados Unidos e a Chi-
na, os países mais ricos do
mundo, investem cada vez
mais no futebol e não é à toa.

O futebol é um dos grandes ne-
gócios da sociedade moderna.
Mas há um desacerto.

lO que acha que mais mudou no
futebol nos últimos anos?
A Copa do Mundo não é mais
onde se vê o melhor futebol.
Tanto é que ela acontece ao fi-
nal da temporada europeia,
quando os jogadores estão es-
tourados. A maior qualidade
do futebol está na Champions,
onde há essa hiperconcentra-
ção de renda que comentei,
com verdadeiras seleções mun-
diais. A Fifa já percebeu isso e
criou um novo campeonato
mundial de clubes, mais um de-
grau da globalização.

lVocê acha que a pandemia mu-
dará algo nesse cenário?
Vai mudar, sem dúvida. Mas
ainda é impossível saber até
onde. Espero que as relações fi-

quem menos desequilibradas,
que seja mais democrático.

lFinanceiramente, você diz?
Não é legal para mim falar
quanto o jogador ganha ou dei-
xa de ganhar. Mas precisa ha-
ver equilíbrio maior em rela-
ção a isso. Luto para que os jo-
gadores sejam valorizados,
Mas voltamos à questão funda-
mental de tudo: a distribuição
da riqueza precisa ser mais
igual. A gente vê clubes pendu-
rados para pagar altos salários
e outros com dificuldade para
voltar a ser competitivo. Meu
clube de origem, o XV de Jaú,
que tem história bonita, está
sem calendário. Você pode cha-
mar de profissional um joga-
dor que só tem garantia de em-
prego durante três meses? Pro-
fissional tem que ter as condi-
ções de viver e sustentar a fa-
mília de sua profissão.

lO que tem achado da seleção
brasileira com Tite?
Me confessei, embora me cus-
te, desencantado. O futebol é
coletivo, quanto mais atuar
junto e em equipe, melhor será
o resultado. E hoje em dia não
há mais espaço para que se
monte uma seleção nacional,
não existe espaço no calendá-
rio para que os jogadores se co-
nheçam.

lE sua vida, como acha que vai
ser depois da pandemia?
Espero poder visitar os netos,
encontrar os amigos e voltar a
bater a minha pelada duas ve-
zes por semana.

lNa pelada você joga do que?
Sou assistente de lateral e de
ponta (risos). Não chego na li-
nha de fundo nem de um lado
nem do outro lado. Engano no
meio do caminho.

ENTREVISTA


BAYERN GOLEIA E IMPEDE
APROXIMAÇÃO DO BORUSSIA

E-MAIL: [email protected]

]O Bayern de Munique superou o
Eintracht Frankfurt por 5 a 2, ontem,
em casa, pelo Campeonato Alemão, e
impediu uma aproximação do Borus-

sia Dortmund, que bateu o Wolfsburg
por 2 a 0, como visitante. Com quatro
pontos de vantagem na liderança (
contra 57), o time bávaro visita os ri-
vais na próxima rodada, terça-feira,
no Signal Iduna Park, sem chance de
perder o posto de primeiro lugar.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


CARREIRA

‘Pensar em abrir o


futebol agora no


Brasil é absurdo’


ANDREAS GEBERT/EFE

H


á muito tempo o Flamengo
é notícia. Foi campeão de to-
dos os títulos, atrás dos
quais correm todos os times do Bra-
sil. De quebra mostrou um futebol
vistoso, eficiente, do qual, também,
muitas vezes em vão, correm os ou-
tros times. De certo modo, o Fla-
mengo ressuscitou um futebol brasi-
leiro meio desacreditado e por tudo
isso, com toda justiça, não saia dos
noticiários.
Pois bem, saiu. A pandemia que
assola o país paralisou tudo, inclusi-
ve as notícias esportivas. Todos fo-
ram relegados à mesma vala comum

do silêncio. Não havia mais competi-
ções e rivais a vencer. Mas o Flamengo
tinha que continuar ‘notícia’. E nestes
últimos tempos, voltou a ostentar essa
duvidosa glória. Talvez inebriado pela
sucessão de títulos e reverências, o Fla-
mengo resolveu olimpicamente des-
cumprir determinações da Justiça e
voltar a treinar. Lutar para voltar a jo-
gar é um direito de todos os clubes.
Lutar contra uma situação econômica
que leva todos à falência é até dever
dos clubes, pensar no seu patrimônio
que se esvai dia a dia é algo a ser enfren-
tado com vigor. Insurgir-se contra
uma determinação legal é outra coisa.

O Flamengo poderia recorrer ao go-
vernador de seu Estado, ao prefeito de
sua cidade. Deveria recorrer prelimi-
narmente às associações médicas do
Rio de Janeiro. Deveria consultar um
instituto científico de excelência inter-
nacional, a Fiocruz, que fica ali mesmo
no Rio de Janeiro. Poderia discutir o
assunto e pedir auxílio à federação ca-
rioca, deveria ou poderia recorrer aos
outros clubes cariocas, além do Vasco
da Gama, para, aí sim, liderar uma deci-
são em conjunto.
Nada disso foi feito, ou foi feito sem
muito ânimo. A atitude tomada foi vol-
tar às atividades, em treino cuidadosa-
mente registrado pela televisão. Ao
mesmo tempo em que fazia isso organi-
zava uma excursão para ia à Brasília
falar com quem? Com o presidente da
República do Brasil!
A manobra não deixa de revelar cer-
ta malícia e esperteza. A reunião foi
cuidadosamente calculada para, num
certo sentido, absolver o Flamengo de
qualquer punição mais forte, já que se

entregava à proteção do presidente da
República. Ao mesmo tempo, por sua
vez, num gesto tácito, colocava à dispo-
sição do presidente toda a nação ru-
bro-negra, o que não é pouco, num mo-
mento em que o presidente debate-se
para resolver problemas pessoais, que
não são poucos nem fáceis.
Estabeleceu-se uma espécie de to-
ma lá dá cá entre a presidência do País
e o presidente do clube mais popular

do Brasil. Deu certo o pleito? Fez senti-
do o pedido? Aparentemente não, já
que, como de hábito, teve contra si to-
da a nação pensante. Mas foi de qual-
quer modo proveitoso para os dois la-
dos. O presidente fez-se fotografar sor-
ridente, não no meio do tiroteio habi-
tual de palavras, mas reunido tranqui-
lamente, sem máscara, com os presi-

dentes do Flamengo e Vasco, tam-
bém sem máscaras. Os clubes arris-
caram onde poderiam. Quem mais
no meio dessa tragédia com milha-
res de mortos poderia sequer ouvir
pleitos como os levados à reunião?
É triste ver o Flamengo nessa posi-
ção. É mais triste ainda ver a posição
do Vasco, coadjuvante numa festa na
qual entrou como ator secundário.
Do Vasco, aliás, é melhor não falar,
para resguardar sua enorme tradição
e história. Esse episódio é uma prova
da confusão que reina no País no en-
frentamento dessa pandemia. En-
quanto imprensa e comunidade cien-
tífica gritam solitárias a plenos
pulmões alertando dos perigos e im-
prudências, vê-se que, com raras ex-
ceções, ninguém está à altura da si-
tuação. Praticamente não há lideres
nem lideranças. O fato é que nin-
guém sabe o que fazer, além do salve-
se quem puder. Nesse sentido, e só
nesse sentido, a atitude do Flamen-
go, se não é correta, é compreensível.

MARCOS DE PAULA/ESTADÃO - 2/5/

Videogame. Ex-jogador vê futebol praticado atualmente sendo muito mecanizado

Afonsinho, 1º jogador a ganhar o passe livre


Formado em medicina,


ex-jogador lamenta forma


como o País está lidando


com a pandemia e pede
esporte mais democrático


]Revelado pelo XV de Jaú
em 1963, Afonsinho defendeu
os quatro grandes do Rio. Tor-
nou-se ídolo do Botafogo e do
Santos, onde atuou com Pelé.
No Alvinegro Carioca, se de-
sentendeu com o então técni-
co Zagallo por se recusar a
cortar o cabelo e chegou a ser
emprestado para o Olaria em


  1. Encerrou a carreira no
    Fluminense, em 1981


Falem de mim


É triste ver o Flamengo nessa
posição. É mais triste ainda
ver a posição do Vasco
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