O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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B8 Economia DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


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MAYRA SCARPI

Por que hashtags com erros de grafia


estão ficando populares no Twitter?


“Não é equívoco, é estratégia para manter um tema entre os mais falados.”


Katherine Rosman
THE NEW YORK TIMES


Há muitas marcas que estão se
dando bem com o novo “estilo
de vida” da quarentena. A Net-
flix é uma delas. Serviços de en-
trega de refeições também. Mas
existe uma, nos EUA, da qual
muita gente ainda não ouviu fa-
lar: a Globe. Seu público-alvo
são todas aquelas pessoas que es-
tão cansadas das pessoas com as
quais vivem. Criada em junho do
ano passado por Emmanuel Ban-
fo, de 30 anos, e Eric Xu, de 36
anos, o Globe é uma versão “diá-
ria, paga por hora” do Airbnb.
O Globe é para quem não con-
segue mais, no meio deste perío-


do de isolamento social, passar
um segundo sequer ouvindo as
“piadas corporativas” do mari-
do numa reunião do Zoom. Ou
não aguenta mais o colega de
quarto fazendo barulho ao co-
mer cereal.
Todos precisam de pausas – e
como não dá para ir para o traba-
lho, um espaço de coworking
ou a um café, é possível alugar
uma sala no Globe. Ou um apar-
tamento inteiro, de uma vez,
por algumas horas. Não é possí-
vel passar a noite em nenhum
desses locais e, por conta do co-
ronavírus, o usuário tem de
mandar uma foto para mostrar
que não está com febre. “Em
um período em que as pessoas
estão à beira de um ataque, uma
vez que ninguém imaginou que
ficaríamos tanto tempo juntos,
nós damos um alívio às pes-
soas”, diz Bamfo.
Foi o caso de Brittney Gwynn,
de 32 anos, que está em quaren-
tena com seu namorado no

Brooklyn. “Nosso amor é incrí-
vel, mas estamos passando tem-
po demais juntos, numa pilha de
nervos”, disse ela. Gerente de
projetos de uma empresa de ar-
te online, ela descobriu o Globe
no ano passado, quando busca-
va um local para uma festa lu-
xuosa com colegas de trabalho.
Durante a quarentena, ela
prestou bastante atenção até
ver se algum apartamento próxi-
mo se tornava disponível – e
não hesitou em alugar um espa-
ço por US$ 100 por apenas duas
horas. “Trouxe meus lenços an-
tibactericidas. Limpei a mesa e

a maçaneta, o interruptor de
luz e qualquer área do aparta-
mento em que estive”, disse ela.
Enquanto esteve no apartamen-
to, fez uma conferência do tra-
balho por 45 minutos. Depois re-

laxou por mais uma hora.

Recarga. Antes do Globe, Em-
manuel Bamfo já havia tentan-
do um negócio na área de alu-
guel de “curtissimo prazo”. Ele
e dois amigos da faculdade ti-
nham criado o Recharge, uma
startup que ligava profissionais
que faziam bicos com quartos
de hotéis vazios. A ideia era que
essas pessoas – motoristas de
aplicativo, entregadores – pu-
dessem tirar um cochilo ou to-
mar um banho nos quartos,
quando estivessem longe de ca-
sa. A ideia era boa, mas os fun-
cionários de hotéis protesta-
ram por ter de limpar os quar-
tos muitas vezes.
Bamfo, então, decidiu expan-
dir o conceito para qualquer pes-
soa que precisasse de um lugar
para relaxar. Na outra ponta,
qualquer pessoa que quisesse ga-
nhar uma grana com suas casas.
Ele se juntou a outro amigo dos
tempos de faculdade, Eric Xu,
que trabalhava como engenhei-
ro no Reddit. Em seus primeiros
meses, o Globe ia bem: havia
oferta e demanda, mas faltava
descobrir como o negócio cres-
ceria. E aí veio o coronavírus.
Hoje, o Globe tem 5,5 mil anfi-
triões e 10 mil usuários que têm
acesso às ofertas. Enquanto is-
so, mais de 100 mil pessoas es-

peram por uma chance de se tor-
nar usuário da plataforma, dis-
se Bamfo. Destes, 20 mil fize-
ram o pedido desde o início de
março. Segundo a empresa, seu
maior problema agora é que há
poucas empresas colocando
suas casas e apartamentos à dis-
posição para estranhos, no
meio de uma pandemia.
Agora, o Globe espera atrair
mais gente como Matt Earnest,
de 37 anos, que gerenciava pro-
priedades na região de São Fran-
cisco. Ele costumava oferecê-las
no Airbnb, mas passou a negar
turistas por medo de contágio.
No entanto, ele acredita que pes-
soas locais, usando os lugares
por duas ou três horas, oferecem
menos risco. “Quero ser respon-
sável e esse tem sido um jeito
útil de complementar a renda
perdida”, disse.
Em abril, ele teve seis agenda-
mentos, faturando entre US$
100 e US$ 150 em cada um. Entre
os usuários, havia um homem
que queria um lugar melhor que
a sua casa para fazer uma reu-
nião profissional via Zoom.
“Aqui em São Francisco, muita
gente tem quatro ou cinco cole-
gas de apartamento. E é fácil um
lugar desses virar um chiqueiro
quanto todos estão trabalhando
de casa”, disse Earnest. /
TRADUÇÃO DE BRUNO CAPELAS

DADO RUVIC / REUTERS

Caixa preta. Empresa não revela critérios específicos para que um assunto específico seja alçado aos ‘trending topics’

6

lO preço da paz

Criado em 2019, o Globe


deixa usuário reservar um


quarto por algumas horas;


negócio tem fila de espera


com 100 mil pessoas


Bruno Romani


Após o ex-juiz Sérgio Moro
pedir demissão do Ministé-
rio da Justiça no fim de abril,
uma das reações da rede de
apoiadores do presidente
Jair Bolsonaro no Twitter foi
levantar a hashtag #Fechado-
ComBolsolnaro. Ela levava
um erro de grafia – um ‘L’ a
mais no sobrenome do presi-
dente – e mesmo assim apare-
ceu entre os assuntos mais co-
mentados da rede social no
fim de semana que sucedeu
aquele 24 de abril. Para oposi-
tores, a iniciativa virou piada.
Mas pode ser mais do que um
descuido, revelando uma es-
tratégia de como usar redes
sociais para espalhar uma
mensagem específica. Afinal,
é difícil imaginar que um erro
tão claro possa parar organi-
camente nos assuntos mais
discutidos do Twitter.
É preciso entender como um
assunto ou hashtag chega aos as-
suntos mais comentados do
Twitter. A empresa não revela
exatamente qual é a fórmula para
que um assunto chegue aos tren-
ding topics (ou assuntos do mo-
mento, como a empresa traduziu
a função no País) – ao Estadão, o
gerente de políticas públicas do
Twitter Brasil, Fernando Gallo,
afirma que essa é uma maneira
de evitar que esse recurso sofra
manipulações. Ele diz também
que o volume de mensagens é só
uma das variáveis.
Um dos aspectos detectados
por especialistas em redes so-
ciais, porém, é que os assuntos co-
mentados incluem termos que es-
tão com picos de uso – ou seja,
um alto volume de mensagens
num curto espaço de tempo é
mais importante do que um as-
sunto comentado constantemen-
te em baixa rotação. Por exem-
plo, o algoritmo seria mais sensí-
vel a mil mensagens postadas em
um minuto do que 100 mil posta-
das ao longo de um mês.
“Estudos sobre as característi-
cas de hashtags mostram que


quando você tem muitos usuá-
rios de perfis variados tuitando
num curto espaço de tempo a
mesma hashtag ou assunto, o al-
goritmo detecta essa explosão e
coloca isso nos trending topics”,
explica Fábio Malini, professor
da Universidade Federal do Es-
pírito Santo. “Os assuntos mais
comentados são sempre afetados
pelo que acontece no mundo offli-
ne, como situações políticas ou
morte de celebridades. É difícil
ser manchete o dia inteiro lá.”
Quando o volume de publica-
ção de uma hashtag fica estável,
significa que ela já começou o pro-
cesso de saída da lista dos assun-
tos mais falados. E a volta não é
tão simples. “Para voltar, uma
mesma hashtag precisa chegar a
outro pico. Ou seja, ela precisa
morrer para depois ressuscitar”,

explica David Nemer, professor
da Universidade da Virgínia
(EUA). “Esse processo é demora-
do. Pode durar semanas até ela
parar de ser publicada ou atingir
um nível baixo”, diz.
É de olho nessa dinâmica que a
hashtag errada pode virar uma
ferramenta. “Não é um equívo-
co. São estratégias para manter
uma mensagem sempre entre os
assuntos mais falados”, diz Mali-
ni. Assim, quando uma hashtag
perde o pico, outra extremamen-
te parecida toma o seu lugar.
Uma letra errada não altera a
mensagem contida na hashtag.
Gallo confirmou que erros de
grafia não interferem na seleção
de hashtags pelo algoritmo do
Twitter. “Os termos e hashtags
presentes nos Assuntos do Mo-
mento são baseados só na ativida-

de das pessoas no Twitter”, diz.

Tática. Embora esteja ganhan-
do notoriedade na internet bra-
sileira, a estratégia não é exata-
mente uma novidade. Um estu-
do com pesquisadores das Uni-
versidades de Kentucky e de
Maryland (ambas nos EUA)
mostrou que em 2016, o Wiki-
leaks utilizou 37 variações da
mesma hashtag para revelar os
pacotes de e-mails de John Po-
desta, ex-presidente da campa-
nha presidencial de Hillary Clin-
ton. Foram usadas as hashtags
#PodestaEmails1, #PodestaE-
mails2, até chegar a 37.
Nesse caso, não são erros de
grafia, mas a lógica é a mesma:
uma pequena variação de caracte-
res para manter o assunto em al-
ta sem alterar a mensagem. Se-

gundo o estudo, o Wikileaks con-
seguiu aparecer 1.917 vezes nos
trending topics de todo o mun-
do, permanecendo lá nos 30 dias
que antecederam as eleições pre-
sidenciais americanas de 2016.
A pedido da reportagem, a AP
Exata, empresa especializada
em análise em redes sociais, fez
um levantamento de todas as
hashtags que levavam o nome
de Bolsonaro durante abril – tan-
to as de apoio quanto as de oposi-
ção. A quantidade de hashtags
com erros de grafia foi baixa em
relação ao volume total, mas apa-
recem algumas variações de #Fe-
chadoComBolsolnaro.
São elas: #Fechado-
ComBolsobaro, #Fe-
chafoComBolsona-
ro, #FechadosCom-
Bolsolnaro, #fecha-

dosComBoldonaro e #Fecha-
dosComBolsanaro. Aparece-
ram ainda #EuApoioBolsolna-
ro e #somostodosbolsobaro,
Nem todas tiveram grande eco,
mas foram utilizadas. Nenhu-
ma hashtag contra o presidente
apareceu com a grafia errada.

Efeitos. O Twitter tem uma ex-
plicação mais simples para o fenô-
meno. “O recurso de autocom-
pletar pode sugerir ao usuário
um termo já usado antes, ainda
que esteja escrito de forma erra-
da”, diz Gallo. Os especialistas
concordam que esse recurso po-
de ajudar o impulsionamento or-
gânico de uma hashtag que come-
çou em redes de robôs.
Outra maneira que a hashtag
errada tem para ganhar audiên-
cia orgânica é chamar a atenção
de um perfil influente no Twit-
ter. “Nas eleições, percebemos
que quando uma autoridade re-
tuitava uma hashtag, ela explo-
dia. Além disso, esse retuíte ‘lava’
a informação, no sentido de legiti-
mizá-la”, diz Raquel Recuero,
professora da Universidade Fede-
ral de Pelotas. No caso político,
um terceiro efeito seria o de pes-
car a atenção de opositores que,
ao fazerem piada com uma
hashtag errada, acabam amplian-
do a divulgação da mensagem.
Para Malini, a falta de transpa-
rência do algoritmo mais atrapa-
lha do que ajudam a plataforma


  • segundo ele, isso tira credibili-
    dade do serviço. Ele, porém, diz
    que vê como positivo o movi-
    mento da rede social de incluir
    assuntos e temas, e não apenas
    hashtags, nos trending topics.
    Isso, segundo o pesquisador,
    amplia a variedade de pessoas e
    perfis que ficam em destaque.
    “Como os spammers mudam
    suas táticas, modificamos nos-
    sas ferramentas para abordar
    tais situações”, explica Gallo.
    “No caso dos Assuntos do Mo-
    mento, tomamos medidas
    preventivas como excluir
    tuítes e usuários automati-
    zados dos cálculos de ten-
    dências.”


BRUNO CAPELAS/ESTADÃO

Startup que aluga


apartamento por hora


explode na quarentena


US$ 50
é o valor, em média, que se paga
pelo uso de um apartamento por
uma hora no Globe. Serviço está
disponível em cidades como No-
va York, San Francisco e Miami

Oásis. Serviço hoje tem 5,5 mil locais à disposição de usuário

Tática. Para especialistas, uso de palavras com problemas de ortografia pode ser estratégia para fazer assunto repercutir por mais


tempo; estratagema foi utilizado pelo Wikileaks durante eleições de 2016 e pode ser replicada por apoiadores do presidente Bolsonaro


Fábio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo
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