O Estado de São Paulo (2020-05-24)

(Antfer) #1

SESSÕES


MONOTEMÁTICAS


É ESPERADO QUE AS
PESSOAS SEJAM AFETADAS
DE ALGUMA FORMA, DIZ
PSIQUIATRA

PARA PSICÓLOGA, NÃO SE
COBRAR É O PRIMEIRO
PASSO PARA LIDAR COM A
SITUAÇÃO

Caderno 2


Caio Castro, no ar em duas novelas PÁG. H12


Busca por ajuda


psicológica cresce e


o assunto é um só: os


efeitos da pandemia


ILUSTRAÇÃO: MARCOS MÜLLER

Giovanna Wolf


Dúvidas sobre como conduzir o
dia a dia em isolamento dentro
de casa. Medo de ir parar no hos-
pital. Receio de dar trabalho pa-
ra os filhos. Preocupações com
a solidão. Esses foram alguns
dos assuntos que surgiram ao
longo das sessões de terapia da
psicóloga Dorli Kamkhagi, que
coordena no Instituto de Psi-
quiatria da Universidade de São
Paulo (USP) um grupo de aten-
dimento psicológico gratuito
para idosos.
Os pacientes de Dorli não são
os únicos a lidar com essas ques-
tões: a pandemia invadiu as ses-
sões de terapia. Psicólogos e psi-
quiatras relatam que os temas
relacionados ao assunto apare-
cem de alguma forma em quase
todos os atendimentos.
Nos últimos meses, a psicólo-
ga Heloísa Caiuby tem atendi-
do tanto pacientes antigos, de
antes da pandemia, quanto no-
vos. “No primeiro caso, perce-
bo que há uma exacerbação das
questões que eles já tinham, en-
quanto alguns pacientes novos
só falam sobre as consequên-
cias da pandemia. Mas a covid-
19 foi mencionada de alguma
forma por todos eles nas ses-
sões”, afirma Heloísa, que aten-
de na startup de terapia online
Vittude – o número de pacien-
tes da plataforma saltou de 22
mil para 110 mil entre fevereiro
e abril. “Há muita insegurança
em relação ao futuro, medo de
ser infectado, preocupação qua-
se obsessiva com cuidados con-
tra a doença e com as crianças
dentro de casa, entre outros as-
suntos”, pontua a psicóloga.
A ONU chegou a emitir um
alerta neste mês dizendo que a
situação pode desencadear uma
grande crise de problemas psico-
lógicos e um estudo da Universi-
dade do Estado do Rio de Janei-
ro (Uerj), publicado no início do
mês, ilustra a situação: os casos
de ansiedade e estresse mais do
que dobraram no País desde o
início da pandemia, enquanto
os de depressão tiveram aumen-
to de 90%.
Os números não são uma sur-
presa, dizem especialistas. “É
um efeito esperado. Estamos ex-
postos a altos níveis de ameaça e
estresse”, afirma Felipe Corchs,
psiquiatra do Programa de
Transtornos de Ansiedade da
Universidade de São Paulo
(USP). Além de ser uma conse-
quência previsível, psicólogos e
psiquiatras ouvidos pelo Esta-
dão destacam que certos níveis
de sofrimento, ansiedade e de-
pressão são legítimos do mo-
mento que estamos vivendo.
“Não é esperado que as pes-
soas atravessem toda essa fase
sem serem afetadas de alguma
maneira. Todo mundo sente um
pouco de medo e abatimento”,
diz Mario Eduardo Pereira, psi-
quiatra e psica-
nalista da Uni-
versidade Esta-
dual de Campi-
nas (Uni-
camp). Elisa
Zaneratto Ro-
sa, professora
de psicologia
social e saúde mental da PUC-
SP, reforça: “Não nos faltam mo-
tivos para estarmos tristes. Esta-
mos falando de uma mudança
muito radical no mundo, que
nos desconectou das bases so-
bre as quais estávamos estrutu-
rados. Também há uma angús-
tia em relação ao futuro”, diz.
Sensações de ansiedade decor-


rentes da pandemia foram ine-
vitáveis para Bárbara Braz, de
29 anos, que começou a fazer
terapia durante a quarente-
na. Ela havia se mudado para
a África do Sul em janeiro des-
te ano para empreender na
área de turismo e teve de vol-
tar às pressas para São Paulo
no começo de abril.
“O estresse começou com
o processo de volta ao Brasil,
para conseguir voo e tudo
mais. Todos os meus planos
mudaram e tive de entender
como ia me manter financei-
ramente. Foi bem difícil orga-
nizar todas essas emoções ao
mesmo tempo”, conta.

Singulares. Por mais que
haja um grande tema recor-
rente, isso não significa que
as sessões estão sendo pareci-
das. “Os sujeitos continuam
singulares, complexos e li-
dando com as situações da
maneira que lhes é própria e
a partir de suas ferramentas
subjetivas”, explica a psicana-
lista Fernanda de Sousa e Cas-
tro Noya Pinto, doutora pela
USP. “Cada um de nós tem
uma lente singular para en-
xergar e agir no mundo, tanto
em relação à pandemia quan-
to ao isolamento, quiçá em re-
lação à vida.”
Diferentemente de muita
gente, a aposentada Thereza
de Jesus Vanetin Moreira, de
79 anos, não sente tanto medo
de ser contaminada.
“Me preocupo mais
com a minha famí-
lia. Tenho uma ne-
ta que está em An-
gola e não conse-
gue voltar. Isso me
tira o sono à noite”,
diz ela, que fez ses-
sões de terapia no
atendimento do Institu-
to de Psiquiatria da USP.
Outra grande questão que
Thereza levou para a psicóloga
foi o fato de ter se mudado para
a casa da filha durante a pande-
mia para não ficar totalmente
sozinha, sem cuidados: “No co-
meço me sentia como uma estra-
nha aqui, gostava de ter meu es-
paço. Agora estou tentando me
encontrar”.
Sérgio Henrique de Oliveira,
de 73 anos, sente falta da realida-
de pré-pandemia: “Adoro ir a
restaurantes, cinemas e teatros
e também sou apaixonado por
futebol. Estou sentindo muita
falta dessas coisas nesse isola-
mento. Falei bastante na tera-
pia de ausência de perspectiva,
de não ter nem ideia de quando
poderei ir a um show novamen-
te”, desabafa.

Em evidência. Além das afli-
ções próprias da pandemia, espe-
cialistas afirmam que o momen-
to também tende a trazer à tona
questões profundas de cada um.
“Nós vivemos mergulhados na
vida prática, como se o mundo
tivesse uma engrenagem lógica.
A pandemia mostra que isso é
algo frágil, que não temos esse
controle, e deixa à flor da pele
grandes questões individuais,
como insegu-
rança e neces-
sidade de
amor”, diz Ma-
rio Eduardo
Pereira, psi-
quiatra e psica-
nalista da Uni-
camp.
No caso do empresário Mar-
cio Canavarro, de 45 anos, a pan-
demia fez com que problemas
familiares aflorassem. “Eram
questões que estavam sendo
empurradas para debaixo do ta-
pete. Essa situação do vírus aca-
ba sendo um catalisador de
preocupações antigas que a gen-
te já tinha”, diz.

Sob o mesmo teto. Para quem
está isolado em casa, a convivên-
cia tem sido uma constante nas
sessões, diz o psiquiatra Caio
Antero Pinheiro, da rede Cia. da
Consulta. “As relações acabam
se intensificando e isso muitas
vezes gera atritos. Fica mais di-
fícil ignorar picuinhas do dia a
dia”, aponta.
Foi por conta disso que
Eduardo Carvalhaes, de 34
anos, resolveu começar a fazer
terapia na quarentena: ele é ca-
sado há dois anos e não havia
tido convívio contínuo com a
mulher como agora. “Sinto ne-
cessidade de ter um tempo
meu, de entender as minhas
emoções. Eu já entendia a im-
portância de fazer terapia, mas
com a pandemia tive de come-
çar. Não teve jeito: ou fazia tera-

pia ou meu casamento ia para o
espaço”, conta o profissional de
tecnologia da informação que
está trabalhando em casa.

Cuidados. Al-
gumas medi-
das podem aju-
dar a lidar com
essa exposição
ao estresse. “É
importante
tentar manter
uma rotina e organizar um fun-
cionamento de vida pessoal e
profissional. Atividades físicas
também são bem-vindas. Além
disso, neste momento é essen-
cial manter contato por meio
dos recursos virtuais com as
pessoas que são significativas
para você”, afirma Mario Eduar-
do Pereira, da Unicamp.

O psiquiatra Felipe Corchs,
da USP, destaca a importância
de se expor ao sol durante o dia,
mesmo que seja por uma fresta
de luz no apar-
tamento.
Para a pro-
fessora da
PUC-SP Elisa
Zaneratto Ro-
sa, é essencial
que neste mo-
mento as pes-
soas acolham todas essas angús-
tias. “Não se cobrar em estar
bem é um primeiro passo para
lidar de um jeito bom com a si-
tuação. Vá identificando a inten-
sidade desses sofrimentos e ob-
servando o quanto eles vão de
alguma maneira te paralisando.
Mantenha a calma, porque são
sentimentos legítimos.”

Desafios. E com tantas ques-
tões, os profissionais de saúde
mental também estão sendo de-
safiados em seus trabalhos: “Es-
tamos lidando com um mundo
em rebuliço e precisamos ter re-
siliência para acolher a dor do
outro. Os psicólogos também
precisam descansar em alguns
momentos para ter força para
isso”, afirma Dorli, da USP.
Do outro lado da tela, os pa-
cientes reconhecem o esforço:
“A terapia foi uma experiência
ótima. O que mais a gente preci-
sa atualmente é falar e ser ouvi-
do”, diz o idoso Sérgio Oliveira.

NA


MATHEUS COUTINHO

Leia mais: como ajudar as
crianças e os reflexos no corpo
PÁGS. H5 a H7

QUARENTENA


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