O Estado de São Paulo (2020-05-24)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 Especial H3


Caderno 2


Leandro Karnal


l]


Robin Givhan
THE WASHINGTON POST


Uma sensação única de descon-
forto nos invade quando o cum-
primento é um gesto desajeita-
do: se estamos esperando um
abraço e o outro espera um bei-
jo. Se o gesto “toca aqui” fica
parado no ar ou se um sorriso
passa despercebido. O senti-
mento não é tanto de desagrado
quanto de embaraço.
“Usamos os cumprimentos
para dizer que fazemos parte
do mesmo grupo, que somos
um membro da gangue”, ex-
plicou Andy Scott, ex-diplo-
mata que já fez muitas mesu-
ras e deu muitos beijinhos no
cenário internacional, falan-
do de sua casa em Londres.
Quando ensaiamos um cum-
primento sem jeito, ele falou,
é como se extrapolássemos
os limites. Por um breve ins-
tante, nos marginalizamos.
Graças a Deus, pelo aperto
de mão, o Esperanto dos cum-
primentos. Esse sinal univer-
salmente reconhecido, que
não pode ser mal-entendido,
mas sempre de cortesia e coo-
peração. Prazer em conhecê-
lo. Então, estamos de acordo.
Foi um prazer. A totalidade
da natureza humana se trans-
mite no aperto da palma de
uma mão com a de outra, e
também com uma ampla va-
riedade de contágios.
Há muito tempo sabemos
que, apesar de todas as forma-
lidades e do decoro, um aper-
to de mão é um prodigioso
caldo de cultura de germes e
sujeiras. Mas o fator do nojo
não importa, porque depen-
demos do aperto de mão para
manter a civilização ociden-
tal funcionando – um acordo
de cavalheiros, uma campa-
nha política, uma lição de es-
pírito esportivo após a outra.
Agora, com o novo corona-
vírus, acabou com a indús-
tria, a politicagem do toque e
atletismo de grupo; ele tam-
bém impediu que as pessoas
apertem as mãos entre si. Os
cientistas, principalmente
Anthony S. Fauci, do Institu-
to Nacional de Alergia e Mo-
léstias Contagiosas, aprovei-
taram da oportunidade para
fazer lobby pela morte opor-
tuna do aperto de mão.
Será que os aventais bran-
cos sabem o alcance do que
estão pedindo? Nossas mãos
foram investidas de poderes
místicos. Elas falam para nós.
Revelam a nossa história. As
mãos macias de um funcioná-
rio de escritório o distinguem
de um operário com suas pal-
mas calosas. O aperto de mão
permite que duas vidas coli-
dam em um breve instante de
confiança.
Dificilmente essa pande-
mia fará esquecer para sem-
pre aquilo que epidemias an-
teriores não conseguiram. O
próprio Fauci acredita que o


nosso compromisso no aper-
to de mãos, em última análi-
se, pode ser algo inabalável.
Além do que, acaso há algu-
ma coisa que possa substituir
este gesto tão profundamen-
te significativo? Recusar-se a
apertar a mão de uma pessoa é
um insulto muito grave. Mos-
trar-se incomodado por isso
chega a ser subversivo, e é por
isso que a aversão de longa data
do presidente é tão notória.
A relação de Donald Trump
com esta prática centenária deu
uma série de voltas e mais vol-
tas nos últimos anos. Quando
candidato, ele se resignou à sua
utilidade política. No cargo, ele
se deliciou em prolongados
apertos de mãos como uma exi-
bição de machismo nacionalis-
ta. E, nos capítulos de abertura
da pandemia do coronavírus,
usando e abusando de sorrisos e
apertos, Trump obstinadamen-

te se recusou a abandoná-los
como sinal de um otimismo ilu-
sório e, bem, feliz de dar a mão.
“Adoro as pessoas deste país.
Você não pode ser um político e
não apertar as mãos”, disse
Trump, em um programa da
Fox News em março. “Agora,
aperto as mãos de todos.”
Mas, finalmente, com o nú-
mero de óbitos nos Estados
Unidos superando os 80 mil,
ele evita, desajeitado, os aper-
tos de mãos com toda a finesse
de um adolescente que ensaia
gestos desajeitados no primeiro
encontro. No início desse mês,
para enfatizar a segurança do
coronavírus, Trump estendeu
sua mão ao governador de Ari-
zona, Doug Ducey, e a retirou
imediatamente em um gesto
semelhante a uma propaganda
enganosa, optando por uma
pancadinha no ombro, o que
fez com que os dois homens

praticamente tocassem o nariz
um do outro.
Aparentemente, não para-
mos de nos tocar reciprocamen-
te como uma forma de apresen-
tação. “Enquanto seres huma-
nos, nos espalhamos pelo plane-
ta e criamos diferentes cultu-
ras. Não obstante, não abando-
namos o propósito original fun-
damental de um cumprimento
físico. Desse modo, estamos
reafirmando um vínculo e nos
testando reciprocamente”, afir-
mou Scott, que também é o au-
tor de One Kiss or Two? The Art
and Science of Saying Hello (Um
Beijo ou Dois? A Arte de se Di-
zer Oi, em tradução livre). O
aperto de mão “balança entre
os nossos instintos competiti-
vos e cooperativos”.
Abandonar para sempre o
aperto de mão equivale a pe-
dir ao ser humano que deixe
de tentar superar o outro ou
de procurar um espírito afim.
Significa apagar séculos de
dados de identificação cultu-
ral e social. Quando estende-
mos a mão em sinal de paz e
camaradagem, estamos ofere-
cendo a força, a intimidade e
a humanidade simbolizadas
pela mão em si. Os crentes
erguem as mãos a Deus, humi-
lhando-se na busca de miseri-
córdia. A imposição das mãos
sobre os que sofrem dará a
eles repouso. Os visitantes
fazem peregrinações à Cape-
la Sistina, onde a mão esten-
dida de Adão busca a mão do
Criador que dá a vida. Na
morte, os cristãos esperam
sentar à direita de Deus – lu-
gar de honra e glória.
A mão “tornou-se um sím-
bolo de saudação, de súplica,

e de condenação... tornou-se
simbólica ou representativa
da pessoa integral na arte, no
drama e na dança”, escreveu
a antropóloga Ethel J. Alpen-
feld em The Anthropology and
Social Significance of the Hu-
man Hand. Seu ensaio de 1955
nota que Immanuel Kant defi-
niu a mão “o outro cérebro
do homem”.
Passamos a associar a mão
direita com o que é bom e a
esquerda com o que é mau,
com a força e com a fraqueza.
Algumas pessoas usam um
pingente no formato de uma
mão direita para afastar o
mal. O homem abotoa a cami-
sa para o lado direito; a mu-
lher para o lado esquerdo. (O
patriarcado está escrito em
todas as coisas). E, portanto,
cumprimentamos os outros
com a mão direita, ainda que
sejamos canhotos.
As mãos leem para os que não
veem e falam para os que são
mudos. As nossas mãos, acredi-
tam alguns, preveem o nosso
futuro com uma linha da vida
gravada na nossa palma. As
mãos dizem a verdade sobre a
nossa idade quando a maioria
dos outros indicadores pode ser

ocultada, pelo menos por algum
tempo, pelo artifício, a diligên-
cia e o botox.
Quando apertamos as mãos
de estranhos, nos apresenta-
mos a eles em nossa inteireza e
em meros segundos indagamos:
Somos iguais? Você é alguém
confiável? É um adversário que
vale a pena? Somos o mesmo
tipo de pessoas – boas pessoas?
As origens do aperto de mão
remontam à Europa medieval,
quando os cavaleiros estendiam
sua mão para mostrar que esta-
vam desarmados. A saudação se
popularizou com os Quakers,
que a abraçaram como uma al-
ternativa mais igualitária para a
mesura. Afirma-se que Thomas
Jefferson teria sido um grande
defensor de aperto de mão e do
que isto representa – pelo me-
nos em teoria.
Trata-se de uma saudação de
gênero neutro. O costume anti-
go do homem fazendo o beija-
mão é menos um gesto de res-
peito e mais exibição de domina-
ção. Foi um momento glorioso
em 1964, quando o presidente
Lyndon Johnson apertou simbo-
licamente a mão de Martin Lu-
ther King Jr. depois de assinar a
lei dos direitos civis.
O poder não está no movi-
mento para cima e para baixo;
é a intimidade da mão na mão.
O toque cria confiança. Nós
avaliamos esse toque. É forte
ou esmagador? Firme ou mo-
le? Usamos estas pequenas in-
formações, usamos e abusa-
mos – abusamos delas em al-
guns casos – para fazer uma
avaliação da integridade do
outro. O fim desse ato pode
nos libertar desses julgamen-
tos superficiais a respeito de
palmas suadas e apertos de pei-
xe morto. E, evidentemente,
poderemos parar de espalhar
muitos germes.
A microscópica estranheza
está clara desde o início do sé-
culo 20. Em 1929, Leila Given,
uma enfermeira que acabara
de assistir à uma convenção,
escreveu que viu uma mulher
espirrar e tossir na mão direita
e depois usá-la para cumpri-
mentar outros participantes.
Posteriormente, a enfermeira
perplexa pediu aos seus alu-
nos que procurassem calcular
a quantas pessoas a mulher
poderia ter passado a sua car-
ga viral.
“Podemos indagar por que a
América sanitária persiste em
um costume que não tem nada
que o justifique do ponto de
vista da saúde, mas os costu-
mes nacionais não são facilmen-
te abolidos”, escreveu a enfer-
meira na revista American Jour-
nal of Nursing. “É duvidoso que
tal aperto de mão possa desapa-
recer algum dia do nosso meio,
e a nossa única esperança está
na educação das pessoas para
que percebam o perigo das infec-
ções transmitidas pelas mãos, e
o uso das medidas preventivas
que se encontram no campo da
higiene pessoal.” Em outras pa-
lavras, lavem as mãos. /
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Dependemos desse gesto para


manter a civilização ocidental


ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

APERTO DE


VOLTARÁ


L


eocádia é assistente de secre-
taria da Escola Estadual Pro-
fessor Heitor Furtado de
Mendonça, na Baixada Santista.
Ela não está em uma situação tão
ruim comparada à das irmãs. Seu
emprego é estável. O salário é bai-
xo, porém, somado ao do marido e
sem pagar aluguel, ela vive uma vi-
da mediana e sem necessidades es-
truturais.
Leocádia não é boa em muitas
coisas, mas há algo no qual ela é
notável. Do nascer ao pôr do sol (e
segundo seu marido às vezes dor-
mindo), ela reclama incessante-
mente. Reclama do transporte pú-
blico apertado e com pessoas in-
convenientes, lamenta a chuva
que cai ou que não chega, ataca o
frio e deplora o calor. Fala diaria-
mente do horror da comida no qui-
lo perto da escola onde trabalha.
“Um verdadeiro grude de prisão”,
diz. No campo pessoal, Leocádia
tem ojeriza a seus colegas. Nossa

secretária é absolutamente imersa
no azedume cotidiano de sua vida.
Sua boca só abre para emitir juízos
negativos.
Assim viveu a funcionária da esco-
la estadual durante anos. Na mesma
toada crítica, redigiu atas de conse-
lho e acompanhou semanas de plane-
jamento pedagógico com o tom de
lamúria eterna. “Leocadiar” virou
dialeto da unidade, usado quando al-
guém ficava protestando de forma as-
sertiva.
As aulas se iniciaram e tudo previa
um ano como todos. Na quarta-feira,
11 de março, a diretora disse à secretá-
ria que receberia uma visita de um
candidato definido como um “meni-
no rastejante”. Ninguém teve qual-
quer compreensão do que se tratava.
Era, como disse dona Nídia, alguém
que não tinha dinheiro para ter uma
cadeira de rodas. Ele não era um ca-
deirante; tratava-se de um rastejan-
te. Carlos Henrique chegou no dia
marcado, como previsto, arrastan-

do-se pelos corredores. A cena como-
veu até o pétreo coração de Leocádia.
Acostumado a ser alvo do olhar en-
tre a piedade e horror, nada no rosto
de Carlos denunciava o inusitado da
sua mobilidade. Ele não reclamou e,
desde o primeiro instante, manifes-
tou uma alegria intensa, excepcional
para aquilo que parecia visível no jul-
gamento alheio: a desgraça de uma
vida tocada pela pobreza e pela restri-
ção física. Como todos perceberam
nas semanas seguintes, o novo aluno
estava sempre sorrindo, permanente-

mente tendo o rosto iluminado por
uma atitude de felicidade. Ele agrade-
cia a todos pela oportunidade de estu-
dar e louvava os professores sempre.
Logo se soube de mais detalhes: a fa-
mília não tinha dinheiro para uma ca-
deira de rodas, no entanto, um dia, o
almejado bem surgiu pela doação de
uma rede de farmácias. Com a cadei-
ra desejada, por quase uma semana,
ele exultou. O mundo nem sempre é

justo e um bando de marginais deci-
diu que poderia roubar do menino a
cadeira de rodas na parada de ônibus.
A família se inscreveu novamente em
programas para obter o aparelho, po-
rém recebeu caras de desconfiança co-
mo se tivesse vendido bem tão precio-
so. Carlos Henrique voltou a rastejar.
O sorriso permanente foi se tor-
nando contagioso. A acérrima Leocá-
dia começou a levar água para ele no
seu trajeto pelo corredor. Ela se ocu-
pou do caso e ajudou em uma campa-
nha para doação de material escolar.
A antiga mal-humorada passou a
usar roupas mais alegres e, pela pri-
meira vez em muitos anos, foi nota-
do que ela cumprimentava alguém
sem vociferar contra o clima ou o
transporte. O pequeno menino ale-
gre tinha conseguido tocar aquela al-
ma viscosa e fez brotar dali como, em
um milagre, uma pessoa um pouco
mais leve.
Prosseguindo com seu novo self, a
secretária promoveu um evento com
rifa. O objetivo? Uma cadeira de ro-
das nova para o aluno. Foi um suces-
so! Em uma sexta-feira cheia de ale-
gria, chegou o cobiçado objeto. Car-
los chorou, apesar de nunca ter pedi-

do nada. Aquela que fora lamurio-
sa com ele pranteou, sob aplausos
de toda a escola que vibrara com a
transformação da mobilidade de
um e da alma de outra. O menino
rastejante conseguira sua ambicio-
nada cadeira; Leocádia atingira a
de espírito.
Há pouco, chegou uma moça pa-
ra trabalhar na merenda e a novata
revelou, desde cedo, um pendor pa-
ra a crítica constante. Leocádia sor-
riu e chamou a funcionária em um
canto para falar da beleza do mun-
do e das pessoas que possuem me-
nos do que ela. E pensar que tudo
começou quando um jovem sorri-
dente rastejou escola adentro e
metamorfoseou a pesada lagarta
amarga em borboleta leve e feliz.
Meu estimado leitor e minha es-
timada leitora, Leocádia eu inven-
tei no exercício ficcional. O meni-
no rastejante existe, como outros
na mesma situação. Cadeira de ro-
das não é tão acessível e muitas pes-
soas ficam imobilizadas em casa
ou rastejam. Ver esse jovem real,
creiam-me, ressignifica sua noção
de crítica. Boa semana para todos
nós que andamos e reclamamos...

lSimbologia

MÃO


Pelos que rastejam


Com sorriso permanente, o
pequeno menino conseguiu
tocar aquela alma viscosa

Inabalável.
Como
substituir
o gesto?

“(A mão) tornou-se um
símbolo de saudação, de
súplica, e de condenação...
tornou-se simbólica ou
representativa da pessoa
integral na arte, no drama
e na dança”

Ethel J. Alpenfeld
ANTROPÓLOGA

KIM HONG-JI/REUTERS
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