O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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H4 Especial DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Alice Ferraz*


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rases como “nunca pensamos
em passar por algo assim” são
ditas diariamente em uma
constatação que traduz nossos senti-
mentos em palavras de espanto, an-
gústia e medo. No primeiro momen-
to, a pandemia afetou nossa estrutu-
ra funcional, nossa saúde física e fi-
nanceira. Foi um choque que nos pa-
ralisou. Sobreviver tomou todas as
nossas forças – estávamos em busca
de um caminho de chão concreto on-
de pudéssemos pisar. Passado o pri-
meiro tranco, e ainda sob forte im-
pacto, percebemos o quanto nossas
bases foram abaladas.
Nossa equilíbrio emocional, que
vinha do nosso cotidiano, de um mo-
do de viver conhecido a que estamos
adaptados, foi colocado à prova.
Com um chacoalhão sem preceden-
tes na nossa breve história, a vida

mostrou que algo estava muito equivo-
cado em nossos comportamentos. Es-
se sofrimento emocional profundo a
que temos sido submetidos gerou um
fruto importante que carrega a semen-
te da transformação: o processo de to-
mada de consciência. Estar atento, des-
perto e com sentido de percepção tor-
nou-se a chave. A vida no piloto auto-
mático, em que repetíamos padrões es-

tabelecidos, para de fazer sentido. Tu-
do nos leva a um novo olhar e precisa de
atenção redobrada e exaustiva para ser
concluída. Nesse processo de autoco-
nhecimento, a palavra propósito se tor-
na protagonista. O propósito passa a

guiar nossas ações, que agora têm a
consciência como pilar. E assim chega-
mos à palavra moda como expressão do
comportamento de um tempo.
Ter propósito está na moda. Esta-
mos todos imbuídos de valor em nos-
sas ações, um objetivo maior deve an-
corar o que antes realizávamos sem
pensar. A compra da roupa, dos mó-
veis, da arte, das flores passa a ser ques-
tionada não só pelo ponto de vista fi-
nanceiro, mas pelo que ela representa.
Comprar sem propósito sai de moda,
cai em desuso e um homem ou uma
mulher dotado de consciência quer en-
tender, avaliar, sentir, antes de consu-
mir. Avançando por esse caminho, en-
tendemos que o propósito é palavra de
âmbito pessoal, que nos impulsiona
de acordo com o objetivo de cada um.
O que muda agora é que, com a pande-
mia, a consciência do coletivo nos leva

a propósitos também coletivos que
se tornam fundamentais nas deci-
sões de consumo, algo antes pouco
levado em consideração pela maio-
ria afoita em comprar, seja como for-
ma de entretenimento, seja para de-
monstrar riqueza pessoal.
São mudanças de valores globais
que carregam o poder de transfor-
mar a cadeia de consumo, seja por
consciência individual ou pela von-
tade de pertencer a esse novo modis-
mo coletivo. A compra com propósi-
to é a chave para abrir nossos dese-
jos e bolsos. Varejistas do mundo
todo irão perseguir esse conceito.
Vale a reflexão consciente na avalia-
ção de quais marcas já eram guiadas
por propósitos e quais, de maneira
oportunista, irão criar narrativas
que convençam o consumidor de
um ideal inexistente. De qualquer
maneira, sairemos todos ganhando.
A busca pelo significado real na com-
pra é um caminho melhor do que o
vivido até agora.

Alice Ferraz

A abertura do comércio vai en-
contrar em breve o consumidor
pós-pandemia. Assim, algumas
empresas são autênticas repre-
sentantes de um novo modo de
pensar e agir, mais coerente
com o presente. O comporta-
mento que guiará essa fase é
chamado aqui de tríade do no-
vo varejo e consiste nesses três
pilares: consciência, propósito
e consumo.
O novo consumidor pós-
pandemia, a partir de uma per-
cepção atenta, desperta e, por-
tanto, consciente, entende e
deseja a compra como reflexo
de um propósito. Consumir
pela simples ânsia de ter/pos-
suir/exibir será ressignifica-
do, não porque quisemos, mas
por termos feito parte de um
movimento acelerado de
transformação mundial. A cri-
se emocional gerada ao consu-
mirmos ou ostentarmos pro-
dutos sem sentido ganha espa-
ço e força.
A partir de agora será natural
a procura por empresas que nos
deixem confortáveis emocio-
nalmente ao consumir, seja por
ajudarem socialmente ou por
não prejudicarem o meio am-
biente. Marcas terão de “pres-
tar contas” de suas atitudes e,
assim como pessoas, definir va-
lores, escolher suas turmas e
contribuir para um mundo
mais equilibrado.
“A compra da arte é toda a
partir de propósitos”, diz Paula
Costa, artista plástica que tem
em seu trabalho esse pensa-
mento como fio condutor. “A
arte abre portas para diversas
emoções, além de trazer beleza
e inspirar por meio de histórias
contadas por imagens. Tudo is-
so nos faz refletir, nos humani-
za e cria conexões.” O artista
do Recife, Samuel de Saboia, ex-
plica a arte como um templo
onde ocorre a metamorfose, a
vivência e a restauração. Uma
vida em telas.
Entender o consumo de arte
pelo testemunho de quem a co-

leciona mostra que o propósito
realmente move o mercado.
“Um consumidor de arte que
compra, por exemplo, a obra da
Paula Costa que traz a palavra
vida escrita em uma rosa, se
sente atraído por essa explícita
manifestação da vida contida
na própria fotografia”, explica
Marcos Amaro, artista, colecio-
nador e proprietário da galeria
Kogan Amaro, ao lado da espo-
sa Ksenia Kogan Amaro, com
sede em São Paulo e em Zuri-
que. “Claro que muitas obras

não trazem uma mensagem tão
clara, mas, como colecionador,
posso afirmar que a arte tem
que nos dizer algo pessoalmen-
te para que o desejo de consu-
mo aconteça.”
Lissa Carmona, referência
no mercado de design e nome à
frente da Etel, especializada
em mobiliário brasileiro, tem
uma visão clara sobre a cons-
ciência de quem escolhe consu-
mir design. “O respeito à cria-
ção, à autenticidade e ao direi-
to autoral é a missão da Etel”,
diz Lissa, que tem como priori-
dade a preservação da memó-
ria dos grandes designers e a
manutenção de seus legados.
“A história do design brasileiro
é um movimento de importân-
cia mundial. Dediquei os últi-
mos 20 anos a projetar esse re-
conhecimento no cenário in-
ternacional”, afirma. “Consu-
mir mobiliário de design nacio-
nal é valorizar a cultura brasilei-
ra”, completa.
A moda, como roupa propria-
mente dita, também entra nes-
sa nova fase e o comportamen-
to de consumo trará mudanças
ainda mais significativas, já que
o mercado tinha na compra por
impulso um dos seus pilares.
Rafaella Caniello, jovem em-
preendedora e diretora criativa
por trás da Neriage, diz que a
palavra que dá nome à sua mar-
ca remete ao propósito da sua
vida e do seu trabalho.
“Neriage é usada para defi-
nir a técnica de trabalho utili-
zada na cerâmica japonesa e
significa misturar várias argi-
las de cores diferentes para
produzir um efeito marmori-
zado que, mesmo com a bele-
za do processo completo,
mantém também os aspectos
particulares de cada etapa”,
explica. “Fazendo um parale-
lo, na minha marca, várias
pessoas produzem uma parte
e, juntas, produzimos um
efeito harmônico em uma ca-
deia 100% ética. Quem com-
pra Neriage entende e valori-
za o processo de criação e
construção da peça”, diz.

DO NOVO VAREJO


TRÍADE

Retratos do Design Nacional


FILIPPO BAMBERGHI

Estilo. Poltrona de Pedro Franco que foi
apresentada no Salone Satellite de Milão

Consciência, propósito e consumo serão


o comportamento que guiará o consumidor


‘Vida’. Obra
da artista
plástica
Paula Costa

Milenar. Biombo Esteira, de ETEL
Carmona, inspirado nas técnicas milenares
da marcenaria, como as estreias das
antigas escrivaninhas inglesas

Destaques: Em três modelos

SAMUEL DE SABOIA

PEDRO FRANCO

Inspiração. Mesa central Pétala,
de Jorge Zalszupin, inspirada na
arte secular japonesa de dobraduras
de papel, chamada origami
Banco. Lissa
Carmona,
curadora de
design e
sócia-diretora
da ETEL,
sentada
no banco
Marquesa,
criado por
Oscar
Niemeyer
e sua filha
Anna Maria

PAULA COSTA

Com a pandemia, a consciência
do coletivo nos leva a
propósitos também coletivos

FERNANDO LASZLO

Consciência, propósito e consumo


‘Mariposa’. De Samuel de Saboia: vivência,
metamorfose e restauração

FERNANDO LASZLO

ILUSTRAÇÃO JULIANA AZEVEDO
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