O Estado de São Paulo (2020-05-24)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 24 DE MAIO DE 2020 Especial H5


Maria Fernanda Rodrigues


Meme retratando a quarentena
com crianças é o que não falta, e
a gente, que está nessa situação,
ri de nervoso. Em um deles, uma
sequência com 12 fotos de Car-
minha, a vilã de Adriana Esteves
em Avenida Brasil, vai mostran-
do a evolução da expressão da
personagem, e de muita mãe no
isolamento: a satisfação de acor-
dar e já ter o dia planejado, a lei-
tura da primeira notícia, a vista
da pia cheia de louça, uma peça
de Lego no meio do caminho, a
descoberta de comida pronta
no freezer, uma nova atividade
que chega da escola, o filho que
tosse, o chilique e a ameaça de ir
embora, a sobrevivência de
mais um dia.
Em outro, chamado Bingo da
Culpa Materna, há itens como:
Netflix ligada o dia inteiro, não
fez nenhuma das atividades lúdi-
cas propostas, já fingiu não escu-
tar a criança chorando, a criança
está com a mesma roupa há dois
dias, pizza de jantar, brigadeiro
de lanche, e por aí vai.
Atire a primeira pedra quem
ainda não deu – ou teve vontade
de dar – um grito nesta quarente-
na. Adultos e crianças estão satu-
rados, e é natural que seja assim,
diz o pediatra Daniel Becker. Is-
so tudo é ruim e desgastan-
te, mas pode ter um
lado bom, ele
completa.
“Os adultos
estão demons-
trando sintomas
como ansiedade,
depressão e me-
do, que explodem
justamente entre
si em conflitos, e tam-
bém explodem com
as crianças, em bri-
gas. Elas absorvem es-
sa ansiedade dos pais e o
clima reinante e podem
expressar sintomas com-
portamentais”, explica
Becker. No entanto, não
vão chegar e dizer: estou
ansioso, estou com medo.
A expressão de suas emo-
ções é por meio de comporta-
mentos inadequados para
chamar a atenção e desafiar os
pais. “Vão ficar nos solicitando
o tempo todo, vão ter crise de
birra, de irritabilidade, vão ficar
hiperativos, rebeldes, indomá-
veis, ter insônia, vão comer de
mais ou de menos”, diz.


Emoções são válidas. Todo
mundo está à flor da pele, mas é
importante não perder de vista
quem é o adulto da história. “Te-
mos de nos lembrar disso e aco-
lher essas emoções, sempre legi-
timando e validando o que elas
estão sentindo, dizendo: ‘você
está com medo’, ‘entendo que
você está chateado, ansioso,
triste, zangado’”, afirma
Becker. “Nomeie as emoções,
deixe a criança entrar em conta-
to com o que está sentindo e sa-
ber o nome desse sentimento.
Tente controlar e repreender as
ações erradas, não as emoções –
elas são sempre válidas. Diga:
Você está com raiva, mas não


pode jogar o celular da mamãe
no chão. Está zangado e triste,
mas não pode bater no papai.”
Essa é a parte difícil mas, co-
mo diz o pediatra, esse confina-
mento tem dois lados. “Em con-
traponto a esse convívio força-
do, que é extremamente cansa-
tivo e doloroso porque não te-
mos mais vidas individuais, não
vemos mais nossos amigos, não
conseguimos trabalhar direito,
não temos a liberdade que tínha-
mos para sair de casa e também
em contraponto ao fato de estar-
mos cheios de ansiedade e de
medo, para as crianças isso
quer dizer que elas estão convi-
vendo com os pais pela primei-
ra vez em muito tempo, em mui-
tos casos, e construindo memó-
rias afetivas.”
Estão conversando, jogando,
brincando, correndo, pulando,
desenhando, dançando e can-
tando juntos, e estão sendo ouvi-
das. “As famílias estão desenvol-
vendo uma intimidade nunca
antes vista”, comenta Becker. E
completa: “Se os adultos conse-
guirem segurar a sua ansiedade,
para as crianças esse momento
pode ser muito bom, porque a
base de seu desenvolvimento é
o vínculo com os pais. E essa
construção de memórias afeti-
vas pode ser muito fortalecedo-
ra de sua identidade, da psique e
da alma delas”.

Memórias. Haverá mal
estar emocional, claro,
mas quando sairmos lá
na frente as crianças te-
rão lembranças fortes
desse período, acredi-
ta Daniel Becker, dono
de um perfil no Insta-
gram seguido por mais
de 120 mil pessoas. “Lem-
branças boas, que são es-
sas memórias afetivas, e
ruins. Vão lembrar de te-
rem superado momentos
difíceis, de quando os pais
deram uma pirada, grita-
ram, ficaram irritados, cho-
raram ou se sentiram fracos,
de quando viram os pais vul-
neráveis, e isso é bom.”
Bom, ele emenda,
contanto que seja com-
pensado por esse lado
de conviver de forma
alegre, feliz e brincan-
te com seus pais. Se
só houver memória
traumática, isso vai
gerar estresse tóxi-
co e prejudicar o
desenvolvimento
da criança. “Se fo-
rem algumas me-
mórias de mo-
mentos ruins
entremeadas
com a predo-
minância de
bons mo-
mentos, es-
sas memó-
rias ruins
também
acabam forta-
lecendo a criança, porque
ela se sente como alguém que
superou junto com a sua família
um momento difícil para toda a
humanidade.”

Pediatra Daniel Becker fala sobre os dois lados da quarentena com filhos


em casa: momentos de estresse e oportunidade para fortalecer vínculos


CRIANÇAS PODEM GUARDAR


]
ANÁLISE: Ilan Brenman

A


relação entre imunidade e aspectos
emocionais já está mais que compro-
vada pela ciência, todos têm casos
para relatar de pessoas que, ao entrar numa
depressão ou num momento estressante,
são acometidas por alguma doença, ou seja,
quando o emocional está muito abalado se
abre uma perigosa janela para as chamadas
doenças oportunistas, aquelas que se esta-
mos bem são debeladas com tranquilidade
pelo nosso sistema imunológico. É evidente
que existem outros motivos para a chama-
da imunidade baixa, mas o componente
emocional é um fator muito importante nes-
se processo. Lembro de uma amiga psicólo-
ga que trabalhava na ala cardiológica de um
hospital e era responsável por avisar ao
médico se o paciente a ser operado estava
em condições emocionais favoráveis para a
cirurgia. Caso observasse, por exemplo,
uma depressão no paciente, a cirurgia, de-
pendendo da gravidade, poderia ser adiada
até uma melhora nas condições emocio-

nais, ou seja, precisamos trabalhar a nossa
mente para ajudar o nosso corpo.
Nessa época de quarentena precisamos
mais do que nunca manter nossa imunida-
de em ordem, mas a tarefa não é fácil. O iso-
lamento, a falta de trabalho e dinheiro, a
ansiedade com o presente e o futuro, as tare-
fas de casa, a escola dos filhos dentro de ca-
sa! Mas nós somos adultos, podemos falar
sobre isso, ou pelo menos deveríamos. E as
crianças, como lidam com tudo isso?
As crianças, principalmente as menores,
sentem tudo, absorvem tudo como espon-
jas e como tais ficam pesadas com esse cli-
ma de incerteza, ansiedade, desesperança, e
isso pode mexer com a imunidade delas
também. O que fazer? A linguagem da infân-
cia é o brincar e as narrativas, elas se comu-
nicam por meio das brincadeiras e das histó-
rias que gostam de ouvir e é nesse espaço
que podemos e devemos fortalecê-las.
Crianças que não estão brincando devem
ser um chamariz para os pais. Não estou di-
zendo aqueles momentos normais, quando
cansamos de brincar e ficamos quietos por
um tempinho, mas se eles ficarem por um
tempo prolongado não querendo mais brin-
car, isso é uma mensagem que estão nos

dando, de que algo não vai bem. Brincar é
sinal de saúde para a infância. E sobre as
histórias? Elas são uma das ferramentas
mais poderosas para fortalecer a mente in-
fantil neste momento. Explico.
Participei há muitos anos numa escola de
uma reunião de pais conduzida por uma psi-
cóloga em que um casal pediu para falar.
Eles disseram que o mundo era muito cruel
e que não queriam que a filha de 4 anos ti-
vesse contato com essa realidade, por isso
não liam nada para a menina que tivesse
bruxas e afins, não viam filmes nem ouviam
músicas que falassem da maldade humana
ou do sofrimento inerente à própria vida. A
filha teria tempo para conhecer esse lado
da natureza humana e do sofrimento quan-
do crescesse, por enquanto queriam prote-
gê-la disso tudo.
Como pai, entendi perfeitamente esse ins-
tinto de proteção. Quem não quer proteger
os filhos? Todos queremos. Mas como estu-
dioso da infância, educador e escritor que
vivenciou milhares de experiências pelo
mundo todo com crianças e seus pais, sabia
que essa forma de proteção desprotege a
criança. A realidade sempre se impõe, im-
possível esconder das crianças o sofrimen-

to decorrente dessa pandemia. Como uma
menina que nunca vivenciou no mundo sim-
bólico o que é sofrimento, o medo, a cora-
gem, a morte, a incerteza, a luta pelo que
você acredita, vai lidar com esse momento?
Ela vai vivenciá-lo como se fosse tudo pela
primeira vez, ou seja, com mais intensidade
e sofrimento, com mais ansiedade e pesar.
As outras crianças que já vivenciaram sim-
bolicamente o que são esses sentimentos
têm mais ferramentas emocionais para li-
dar com esse momento.
Os bons contos ensinam que quando esta-
mos juntos combatemos melhor as bata-
lhas das nossas vidas e, como disse uma au-
tora que gosto muito, os contos são um ma-
pa das emoções humanas, uma bússola a
guiar a criança no mundo que se abre para
ela, isso tudo recheado de muita aventura,
suspense, humor... Brincar e histórias, recei-
ta fundamental para a saúde dos nossos fi-
lhos em tempos de isolamento.

]
ILAN BRENMAN É AUTOR DE LIVROS PARA A INFÂNCIA.
ENTRE SUAS OBRAS ESTÃO O QUE CABE NUM LIVRO?,
VOCÊ NÃO VEM BRINCAR?, TELEFONE SEM FIO E ATÉ AS
PRINCESAS SOLTAM PUM

Vidas em Quarentena*


BOAS


MEMÓRIAS


‘A imunidade e


a infância’


ILUSTRAÇÃO: MARCOS MÜLLER
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